Pedro D’Orey da Cunha, começa
por destacar a importância de se situar e distinguir duas teorias que na sua
opinião se encontram em confronto no campo da educação moral da juventude. Por
um lado a teoria da identificação
cultural e por outro a teoria da reflexão
crítica. Os seguidores da primeira teoria estariam mais ligados ao campo
psicanalista e behaviorista (Freud e Bandura), os segundos provêm mais da
filosofia ou psicologia (Piaget e Kohlberg). Os que favorecem a identificação
cultural de certa forma perdem a reflexão crítica o que pode conduzir ao
conformismo, são mais identificados com um tipo de mentalidade conservadora. Mas,
por outro lado, os que tomam em conta apenas a reflexão crítica «sentem
imediatamente o perigo de estar a encorajar, ou a atitude cínica do observador,
ou a ansiedade difusa do desenraizado» (Cunha, 1996: 13), sendo mais
identificados com um tipo de mentalidade liberal.
Segundo o autor, em Portugal prevalece a teoria da
reflexão crítica, um pouco em oposição áquilo que se verifica noutros países,
nomeadamente nos Estados Unidos, onde a reflexão crítica tem dado lugar à
identificação cultural, uma vez que os jovens começavam a denotar um forte
desenraizamento cultural e sentimento de anomia generalizada.
P. D’orey da Cunha na sua reflexão vai propor um quadro
de referências conceptual de forma encontrar soluções para as duas correntes,
para puder ser evitado quer o conformismo quer o desenraizamento. Para isso,
começa por clarificar três conceitos que no seu entender são fundamentais para
a educação moral; Cultura, Ética e Moral.
Cultura
D’Orey define a cultura como a articulação social do gosto, «é a articulação social, não
individual ou privada; não é irupção momentânea ou permanente do gosto
idiossincrático do indivíduo, mas a articulação construída e mantida por uma
comunidade ou uma sociedade, ao longo do tempo e num determinado espaço. É a
articulação social do gosto, isto é, das inclinações, das preferências, das
atracções» (Cunha, 1996: 15).
São
as inclinações, gostos e preferências de cada indivíduo dentro do grupo que fazem
com que ele se identifique e se assemelhe com os outros membros do grupo, é o
que D’orey chama “cultura profunda”. Às expressões e produtos desta cultura
chama “alta cultura”. Por alta cultura entende tudo aquilo que pode ser
ensinado sobre essa cultura, tal como a língua, os códigos jurídicos, as
conceções morais, os arranjos políticos e sociais e as organizações religiosas
e os produtos artísticos.
É
através desta relação, entre cultura profunda e alta cultura que se processa a
identificação cultural, uma vez que uma implica a outra, é uma relação de “mútua
causalidade”. A identificação cultural resulta quer da imersão na cultura
profunda como na aprendizagem da alta cultura, a primeira é quase natural,
surge geralmente no ambiente familiar, através da imitação dos modelos, como os
pais por exemplo. Ao passo que a segunda é resultado de um planeamento e de
ensino, é adquira nas escolas e nas instituições sociais. A alta cultura acaba
por se constituir numa identificação cultural que é reflexo e expressão da
cultura profunda.
A
identificação cultura concebida desta forma pode possibilitar a coexistência em
conjunto da reflexão crítica, não tendo os dois pólos de estar em tensão, uma
vez que a reflexão crítica em vez de se opor à identidade cultural pode
funcionar como complemento desta, tendo um papel ativo na forma como a alta
cultura é expressada (“através da hermenêutica da alta cultura que pode
facilitar ou empreender”).
Ética
Enquanto
a cultura é articulação social do gosto,
a ética é a articulação racional do bem.
D’Orey procura desassociar o bem com o satisfatório. A ética não diz respeito
ao satisfatório, relaciona-se mais com o sentido do dever, e dá o exemplo dos
pais, que cuidam dos seus filhos não por satisfação (embora lhes possa dar
satisfação), mas sim porque sentem que esse é o seu dever, independentemente de
dar satisfação ou não. «Cuidam do filho porque isso é que está bem, porque é
racional: ética como articulação do bem» (Cunha, 1996: 17). D’Orey lembra,
contudo, que a ética nunca é pura, ela dá-se numa determinada cultura, e isso é
o que vai dar origem à moral.
Moral
Muitas
vezes a ética confunde-se com a moral, mas em termos pedagógicos (que é o que
aqui nos interessa) é importante fazer a distinção. D’Orey menciona que muitos
dos pensadores, consideram que a ética exprime os princípios universais mais abstratos,
ao passo que a moral se refere a normas concretas, às ações, que muitas das
vezes podem até ser expressas por códigos. A ética será mais indiferente ao
relativismo cultural ao passo que a moral é mais dependente de cada cultura, a
ética situa-se “acima” da moral. A ética será só uma ao passo que podem
coexistir várias morais. A pedagogia insere-se nesta relação como forma de
muitas vezes ser o meio de levar a ética a ser expressa por outra moral.
Implicações
pedagógicas
Para
D’Orey, no que à pedagogia de educação moral diz respeito, não se deve excluir
quer a identidade cultural quer a reflexão crítica, ambos os pólos podem
coexistir e até é bom que isso aconteça. Se por um lado é fundamental preservar
a identidade cultural, no sentido de manter um determinado paradigma ético que
possa dar origem a uma moral particular, por outro lado é fundamentar haver
reflexões críticas dessa moral para que possa ser possível melhorá-la e
evoluí-la. Na pedagogia da educação moral, ao serem transmitidos os costumes e
o passado da história particular de cada sociedade ou comunidade, está-se
simultaneamente a fomentar uma identificação com esse passado e respetivos
modelos, e a propiciar reflexão crítica acerca desses modelos e das suas carências.
Sem a identificação cultural a reflexão crítica seria um exercício puramente
mental que desligaria a moral da ética.
Assim,
conclui D’Orey, que o grande desafio da educação de hoje é «conseguir que todos
nós passemos a gostar do bem, da Ética (razão) à Cultura (gosto). Isto porque
sendo a ética a articulação racional do bem e a cultura a articulação social do
gosto, a «ética só se realiza em acção se passar pela cultura; só faço o bem se
gostar do bem». (Cunha, 1996: 24).
A
Educação do Carácter
É
um movimento de educação moral que tem como objetivo delinear políticas
educativas que favoreçam a educação do carácter, procurando dar resposta aos
graves problemas pedagógicos das escolas. É um movimento que está muito
impregnado nos Estados Unidos. Contudo, não é um movimento que gere consensos
no panorama educativo, porque, se por um lado, apela a um retorno a algo que
foi habitual no passado, por outro lado afigura-se como uma nova proposta, o
que faz com que alguns caracterizem o movimento como sendo conservador e outros
enalteçam o facto de o movimento ter em conta precisamente o passado.
O
primeiro movimento de Educação do Carácter surge nos inícios do séc. XX nos
E.U.A., e emerge de um esforço para «formar os jovens para as virtudes cívicas
da democracia, num contexto social de pluralismo religioso e de separação entre
Igreja e o Estado.» (Cunha, 1996: 29). Esta formação seria direta e visava
desenvolver todos os aspetos do carácter que fossem necessários para uma vida
democrática plena. O declínio deste primeiro movimento dá-se com o aparecimento
de “novas tendências” nas ciências sociais e de diversas transformações sociais
e culturais. As ciências sociais demonstraram que a formação do carácter seria
inútil, uma vez que as ações dos seres humanos eram mais determinadas pelos
“condicionamentos das situações”, ao invés de um qualquer estado interno do
carácter. As transformações na cultura deram-se com o relativismo popular e o
positivismo lógico, que defendiam a capacidade do indivíduo ser autónomo e
atingir a sua autorrealização, em que os métodos da educação nunca deveriam ser
diretos, ao contrário do que defendiam os propulsores do movimento. Com o
relativismo positivista surge um novo ideal de educação moral, assente na ideia
de que os valores são subjetivos e por isso são formados por cada indivíduo em
liberdade e de acordo com os seus interesses, não havendo assim espaço para
qualquer endoutrinação. Os professores não deviam educar o carácter, mas apenas
“ajudar os jovens a clarificar os seus próprios valores”, mantendo-se neutros.
A
revitalização do Movimento de Educação do Carácter, que ficou descrito como “o
novo movimento de educação do carácter”, começa a tomar forma, sobretudo, na
década de 80, e os seus principais defensores são Wynne, Ryan, Benninga, Fowler,
Kilpatrick e Lickona. A principal motivação do movimento prende-se com três
fatores: Primeiro; o sentimento de anomia, propensão para a violência e
autodestruição nos jovens (como o consumo de drogas). Segundo; o baixo
rendimento escolar e o desajuste dos programas de educação moral para a época. Terceiro;
a crítica filosófica e científica “aos reducionismos” das conceções anteriores
de educação moral (incluindo o movimento de formação do carácter inicial).
Às
críticas apresentadas, os defensores do novo movimentos contrapuseram algumas
propostas para aquilo que defendiam como sendo os parâmetros ideais para uma
educação moral. Assim, propuseram uma visão mais alargada do agente moral, ou
seja, o agente moral deveria, ao nível do conhecimento moral, saber quais os
seus direitos e deveres, ser capaz de refletir sobre as normas morais em
sociedade, avaliar os pólos que fundamentam o aparecimento do sujeito e ser
capaz de ajuizar. Ao nível dos afetos morais deveria ser capaz de estabelecer
uma identificação pessoal com os valores e sabê-los defender, e ser capaz de
demonstrar empatia com o sofrimento dos outros.
Propuseram também um conceito mais alargado do
professor enquanto educador moral, isto é, o professor deveria ter
conhecimentos morais suficientes que lhe permitissem fazer uma clarificação dos
valores aos alunos, o professor deveria assumir um papel de “educador global”.
O professor deve saber aceitar-se como modelo, comprometer-se com o domínio
moral, argumentar moralmente e assistir o aluno nesse processo. Deve saber
também exprimir a sua visão moral, promover a empatia e o clima moral da
classe, em suma, deve saber envolver os alunos na ação moral (cf. Cunha, 1996:
38,39).
Outra
proposta foi no sentido de a escola ser um espaço mais aberto e propenso a uma
educação moral. A escola deveria assumir um papel profundo, direto e planeado
na formação do caráter moral dos alunos. Os defensores do novo movimento, para
argumentarem a favor destes ideais, usaram como estratégia evidenciar algumas
falácias que foram asseveradas nas escolas por determinados pedagogos e pela
moderna psicologia.
A falácia do ensino divertido, que consistia em tornar as aulas mais graciosas para os
alunos, mais leves, que agarra-se os alunos à aula, e com retiram o pendor
negativo que as aulas tinham, onde os alunos tinham medo do professor. A
falácia seria, então, afirmar que o facilitismo e o gosto são critérios
absolutos, e que quando estão ausentes, tem de se mudar os padrões, trocar os
objetivos ou então não se termina o programa. A esta falácia os defensores do
movimento contrapõem uma aprendizagem
profunda, isto é, ao invés do facilitismo, deve o ensino ser incisivo, os
alunos devem esforçar-se mais para lá do que lhes é pedido. E neste processo
cabe à escola intervir com estratégias que permitam manter o interesse,
encorajar e animar os alunos.
A falácia da autoestima, para a psicologia a autoestima seria um dos fatores mais
relevantes para os problemas dos jovens, então, a falácia consistia em afirmar
que levantando a autoestima muitos desses problemas desapareceriam. Para os
defensores do novo movimento a autoestima é apenas da ordem dos efeitos
secundários, ou seja, não pode ser estimulada diretamente, apenas
indiretamente, isto é, o aluno só com o trabalho poderia elevar a sua
autoestima, teria de ser um processo interno e não externo. A escola deveria
precisamente fomentar atividades que possibilitassem aos alunos demonstrar
todas as suas capacidades e conhecimentos, através da exigência, do rigor, da
qualidade e excelência.
A falácia da endoutrinação, esta falácia consiste em defender a autonomia e a
liberdade contra a endoutrinação ou transmissão de valores. Os jovens devem
crescer num vazio cultural. Os defensores da formação de carater contrapõem
afirmando que é impossível atingir o vazio cultural e a neutralidade do
professor. Ao tentarem criar um vazio cultural apenas estavam a transmitir aos
alunos que tudo era relativo. Assim, a escola deve é transmitir os valores, mas
levar os alunos a hierarquizar os valores que previamente possuem, e deve
tentar abrir novos horizontes nos alunos.
A falácia da democracia, esta falácia consiste no facto de a nova ideologia
educativa subentender que a educação para a democracia deve ser feita através
da transformação da vida familiar e escolar em democracias participativas. O
que acontece é que os alunos não têm o seu desenvolvimento moral
suficientemente amadurecido para poderem deliberar acerca de questões de
justiça ou democracia. Em sentido contrário, os defensores do novo movimento
defendem uma escola em que os professores são a autoridade, sem descorar a
participação progressiva dos alunos.
Conclusão (pessoal) Crítica
Apesar
do movimento de educação para o caráter ser apresentado como tendo origem no
início do séc. XX, a verdade é que retomam uma ideia que já remonta à época
clássica greco-romana. Já os gregos davam grande importância à educação do
espírito, que deveria ser feita pela música e pela poesia. A música (arte das
musas) implicava a formação moral, religiosa, estética e dos afetos (formação
do caráter). Homero, nos seus poemas épicos incitava à imitação dos heróis, os
jovens deveriam ser educados tendo os heróis como modelos, que eram o exemplo
máximo de uma boa formação do caráter. A educação espartana, muito direcionada
para o treino militar intenso e prolongado, não descuidava o treino da vontade
e o autodomínio, tudo visando a formação do carácter do cidadão. A educação
ateniense tinha duas finalidades: o desenvolvimento de um cidadão fiel ao
estado, e a formação de um carácter harmonioso e com domínio e controlo das
suas próprias forças e capacidades. Aristóteles proclamava uma educação das
virtudes, para a boa formação de caráter dos jovens. A educação romana visava
fundamentalmente a formação do carácter moral das pessoas para dar à cidade
bons cidadãos. Por isso é que Cícero pôde escrever que “A melhor das heranças
que os pais podem deixar aos filhos, mais valiosa do que todo o património, é a
glória da sua virtude e dos seus feitos, glória à qual deve ter-se por crime e
injúria maculá-la” (Cícero, Dos Deveres, 2000:
I.33.121).
Assim,
desde os nossos antepassados que o ser humano continua a ser o mesmo e com as
mesmas necessidades e preocupações, isto é, no que à educação formativa diz
respeito as necessidades são as mesmas. E uma boa educação moral vai
refletir-se necessariamente numa boa formação de caráter, e é desde crianças se
consegue ser bem-sucedido ou não num qualquer processo educativo e formativo. A
educação e a formação moral e do caráter deve começar desde criança e
preservar-se ao longo da vida. Os mais velhos devem ter uma atitude de vigilância
e presença atuante na formação dos mais novos, exigindo a correção atempada de
comportamentos errados ou incorretos, ou seja, o exemplo dos mais velhos é
indispensável, no sentido de criar bons hábitos, e de levar os jovens a
compreenderem, ao longo do seu crescimento, porque é que as coisas são assim e
não de outra maneira.
Da
mesma forma, a escola deve ter uma intervenção direta na educação moral dos
alunos, dando seguimento ao “trabalho” que é realizado em casa pela família. A
escola deve ser o local onde os alunos obtêm os mecanismos da socialização,
onde o professor é o agente da formação social e cívica do aluno.
Ricardo Carvalho
Bibliografia
CUNHA, Pedro D’Orey (1996), Ética e Educação, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa