sábado, 16 de janeiro de 2016

RESUMO E CRÍTICA DO CAP. I DA OBRA: ÉTICA E EDUCAÇÃO DE PEDRO D’OREY DA CUNHA



         Pedro D’Orey da Cunha, começa por destacar a importância de se situar e distinguir duas teorias que na sua opinião se encontram em confronto no campo da educação moral da juventude. Por um lado a teoria da identificação cultural e por outro a teoria da reflexão crítica. Os seguidores da primeira teoria estariam mais ligados ao campo psicanalista e behaviorista (Freud e Bandura), os segundos provêm mais da filosofia ou psicologia (Piaget e Kohlberg). Os que favorecem a identificação cultural de certa forma perdem a reflexão crítica o que pode conduzir ao conformismo, são mais identificados com um tipo de mentalidade conservadora. Mas, por outro lado, os que tomam em conta apenas a reflexão crítica «sentem imediatamente o perigo de estar a encorajar, ou a atitude cínica do observador, ou a ansiedade difusa do desenraizado» (Cunha, 1996: 13), sendo mais identificados com um tipo de mentalidade liberal.
            Segundo o autor, em Portugal prevalece a teoria da reflexão crítica, um pouco em oposição áquilo que se verifica noutros países, nomeadamente nos Estados Unidos, onde a reflexão crítica tem dado lugar à identificação cultural, uma vez que os jovens começavam a denotar um forte desenraizamento cultural e sentimento de anomia generalizada.
            P. D’orey da Cunha na sua reflexão vai propor um quadro de referências conceptual de forma encontrar soluções para as duas correntes, para puder ser evitado quer o conformismo quer o desenraizamento. Para isso, começa por clarificar três conceitos que no seu entender são fundamentais para a educação moral; Cultura, Ética e Moral. 

            Cultura

            D’Orey define a cultura como a articulação social do gosto, «é a articulação social, não individual ou privada; não é irupção momentânea ou permanente do gosto idiossincrático do indivíduo, mas a articulação construída e mantida por uma comunidade ou uma sociedade, ao longo do tempo e num determinado espaço. É a articulação social do gosto, isto é, das inclinações, das preferências, das atracções» (Cunha, 1996: 15).
São as inclinações, gostos e preferências de cada indivíduo dentro do grupo que fazem com que ele se identifique e se assemelhe com os outros membros do grupo, é o que D’orey chama “cultura profunda”. Às expressões e produtos desta cultura chama “alta cultura”. Por alta cultura entende tudo aquilo que pode ser ensinado sobre essa cultura, tal como a língua, os códigos jurídicos, as conceções morais, os arranjos políticos e sociais e as organizações religiosas e os produtos artísticos.
É através desta relação, entre cultura profunda e alta cultura que se processa a identificação cultural, uma vez que uma implica a outra, é uma relação de “mútua causalidade”. A identificação cultural resulta quer da imersão na cultura profunda como na aprendizagem da alta cultura, a primeira é quase natural, surge geralmente no ambiente familiar, através da imitação dos modelos, como os pais por exemplo. Ao passo que a segunda é resultado de um planeamento e de ensino, é adquira nas escolas e nas instituições sociais. A alta cultura acaba por se constituir numa identificação cultural que é reflexo e expressão da cultura profunda.
A identificação cultura concebida desta forma pode possibilitar a coexistência em conjunto da reflexão crítica, não tendo os dois pólos de estar em tensão, uma vez que a reflexão crítica em vez de se opor à identidade cultural pode funcionar como complemento desta, tendo um papel ativo na forma como a alta cultura é expressada (“através da hermenêutica da alta cultura que pode facilitar ou empreender”).

Ética

Enquanto a cultura é articulação social do gosto, a ética é a articulação racional do bem. D’Orey procura desassociar o bem com o satisfatório. A ética não diz respeito ao satisfatório, relaciona-se mais com o sentido do dever, e dá o exemplo dos pais, que cuidam dos seus filhos não por satisfação (embora lhes possa dar satisfação), mas sim porque sentem que esse é o seu dever, independentemente de dar satisfação ou não. «Cuidam do filho porque isso é que está bem, porque é racional: ética como articulação do bem» (Cunha, 1996: 17). D’Orey lembra, contudo, que a ética nunca é pura, ela dá-se numa determinada cultura, e isso é o que vai dar origem à moral.

Moral

Muitas vezes a ética confunde-se com a moral, mas em termos pedagógicos (que é o que aqui nos interessa) é importante fazer a distinção. D’Orey menciona que muitos dos pensadores, consideram que a ética exprime os princípios universais mais abstratos, ao passo que a moral se refere a normas concretas, às ações, que muitas das vezes podem até ser expressas por códigos. A ética será mais indiferente ao relativismo cultural ao passo que a moral é mais dependente de cada cultura, a ética situa-se “acima” da moral. A ética será só uma ao passo que podem coexistir várias morais. A pedagogia insere-se nesta relação como forma de muitas vezes ser o meio de levar a ética a ser expressa por outra moral.   

 Implicações pedagógicas

Para D’Orey, no que à pedagogia de educação moral diz respeito, não se deve excluir quer a identidade cultural quer a reflexão crítica, ambos os pólos podem coexistir e até é bom que isso aconteça. Se por um lado é fundamental preservar a identidade cultural, no sentido de manter um determinado paradigma ético que possa dar origem a uma moral particular, por outro lado é fundamentar haver reflexões críticas dessa moral para que possa ser possível melhorá-la e evoluí-la. Na pedagogia da educação moral, ao serem transmitidos os costumes e o passado da história particular de cada sociedade ou comunidade, está-se simultaneamente a fomentar uma identificação com esse passado e respetivos modelos, e a propiciar reflexão crítica acerca desses modelos e das suas carências. Sem a identificação cultural a reflexão crítica seria um exercício puramente mental que desligaria a moral da ética.
Assim, conclui D’Orey, que o grande desafio da educação de hoje é «conseguir que todos nós passemos a gostar do bem, da Ética (razão) à Cultura (gosto). Isto porque sendo a ética a articulação racional do bem e a cultura a articulação social do gosto, a «ética só se realiza em acção se passar pela cultura; só faço o bem se gostar do bem». (Cunha, 1996: 24).   

A Educação do Carácter

É um movimento de educação moral que tem como objetivo delinear políticas educativas que favoreçam a educação do carácter, procurando dar resposta aos graves problemas pedagógicos das escolas. É um movimento que está muito impregnado nos Estados Unidos. Contudo, não é um movimento que gere consensos no panorama educativo, porque, se por um lado, apela a um retorno a algo que foi habitual no passado, por outro lado afigura-se como uma nova proposta, o que faz com que alguns caracterizem o movimento como sendo conservador e outros enalteçam o facto de o movimento ter em conta precisamente o passado.
O primeiro movimento de Educação do Carácter surge nos inícios do séc. XX nos E.U.A., e emerge de um esforço para «formar os jovens para as virtudes cívicas da democracia, num contexto social de pluralismo religioso e de separação entre Igreja e o Estado.» (Cunha, 1996: 29). Esta formação seria direta e visava desenvolver todos os aspetos do carácter que fossem necessários para uma vida democrática plena. O declínio deste primeiro movimento dá-se com o aparecimento de “novas tendências” nas ciências sociais e de diversas transformações sociais e culturais. As ciências sociais demonstraram que a formação do carácter seria inútil, uma vez que as ações dos seres humanos eram mais determinadas pelos “condicionamentos das situações”, ao invés de um qualquer estado interno do carácter. As transformações na cultura deram-se com o relativismo popular e o positivismo lógico, que defendiam a capacidade do indivíduo ser autónomo e atingir a sua autorrealização, em que os métodos da educação nunca deveriam ser diretos, ao contrário do que defendiam os propulsores do movimento. Com o relativismo positivista surge um novo ideal de educação moral, assente na ideia de que os valores são subjetivos e por isso são formados por cada indivíduo em liberdade e de acordo com os seus interesses, não havendo assim espaço para qualquer endoutrinação. Os professores não deviam educar o carácter, mas apenas “ajudar os jovens a clarificar os seus próprios valores”, mantendo-se neutros.
A revitalização do Movimento de Educação do Carácter, que ficou descrito como “o novo movimento de educação do carácter”, começa a tomar forma, sobretudo, na década de 80, e os seus principais defensores são Wynne, Ryan, Benninga, Fowler, Kilpatrick e Lickona. A principal motivação do movimento prende-se com três fatores: Primeiro; o sentimento de anomia, propensão para a violência e autodestruição nos jovens (como o consumo de drogas). Segundo; o baixo rendimento escolar e o desajuste dos programas de educação moral para a época. Terceiro; a crítica filosófica e científica “aos reducionismos” das conceções anteriores de educação moral (incluindo o movimento de formação do carácter inicial).   
Às críticas apresentadas, os defensores do novo movimentos contrapuseram algumas propostas para aquilo que defendiam como sendo os parâmetros ideais para uma educação moral. Assim, propuseram uma visão mais alargada do agente moral, ou seja, o agente moral deveria, ao nível do conhecimento moral, saber quais os seus direitos e deveres, ser capaz de refletir sobre as normas morais em sociedade, avaliar os pólos que fundamentam o aparecimento do sujeito e ser capaz de ajuizar. Ao nível dos afetos morais deveria ser capaz de estabelecer uma identificação pessoal com os valores e sabê-los defender, e ser capaz de demonstrar empatia com o sofrimento dos outros.
 Propuseram também um conceito mais alargado do professor enquanto educador moral, isto é, o professor deveria ter conhecimentos morais suficientes que lhe permitissem fazer uma clarificação dos valores aos alunos, o professor deveria assumir um papel de “educador global”. O professor deve saber aceitar-se como modelo, comprometer-se com o domínio moral, argumentar moralmente e assistir o aluno nesse processo. Deve saber também exprimir a sua visão moral, promover a empatia e o clima moral da classe, em suma, deve saber envolver os alunos na ação moral (cf. Cunha, 1996: 38,39).
Outra proposta foi no sentido de a escola ser um espaço mais aberto e propenso a uma educação moral. A escola deveria assumir um papel profundo, direto e planeado na formação do caráter moral dos alunos. Os defensores do novo movimento, para argumentarem a favor destes ideais, usaram como estratégia evidenciar algumas falácias que foram asseveradas nas escolas por determinados pedagogos e pela moderna psicologia.
A falácia do ensino divertido, que consistia em tornar as aulas mais graciosas para os alunos, mais leves, que agarra-se os alunos à aula, e com retiram o pendor negativo que as aulas tinham, onde os alunos tinham medo do professor. A falácia seria, então, afirmar que o facilitismo e o gosto são critérios absolutos, e que quando estão ausentes, tem de se mudar os padrões, trocar os objetivos ou então não se termina o programa. A esta falácia os defensores do movimento contrapõem uma aprendizagem profunda, isto é, ao invés do facilitismo, deve o ensino ser incisivo, os alunos devem esforçar-se mais para lá do que lhes é pedido. E neste processo cabe à escola intervir com estratégias que permitam manter o interesse, encorajar e animar os alunos.
A falácia da autoestima, para a psicologia a autoestima seria um dos fatores mais relevantes para os problemas dos jovens, então, a falácia consistia em afirmar que levantando a autoestima muitos desses problemas desapareceriam. Para os defensores do novo movimento a autoestima é apenas da ordem dos efeitos secundários, ou seja, não pode ser estimulada diretamente, apenas indiretamente, isto é, o aluno só com o trabalho poderia elevar a sua autoestima, teria de ser um processo interno e não externo. A escola deveria precisamente fomentar atividades que possibilitassem aos alunos demonstrar todas as suas capacidades e conhecimentos, através da exigência, do rigor, da qualidade e excelência.
A falácia da endoutrinação, esta falácia consiste em defender a autonomia e a liberdade contra a endoutrinação ou transmissão de valores. Os jovens devem crescer num vazio cultural. Os defensores da formação de carater contrapõem afirmando que é impossível atingir o vazio cultural e a neutralidade do professor. Ao tentarem criar um vazio cultural apenas estavam a transmitir aos alunos que tudo era relativo. Assim, a escola deve é transmitir os valores, mas levar os alunos a hierarquizar os valores que previamente possuem, e deve tentar abrir novos horizontes nos alunos.
A falácia da democracia, esta falácia consiste no facto de a nova ideologia educativa subentender que a educação para a democracia deve ser feita através da transformação da vida familiar e escolar em democracias participativas. O que acontece é que os alunos não têm o seu desenvolvimento moral suficientemente amadurecido para poderem deliberar acerca de questões de justiça ou democracia. Em sentido contrário, os defensores do novo movimento defendem uma escola em que os professores são a autoridade, sem descorar a participação progressiva dos alunos.

Conclusão (pessoal) Crítica

Apesar do movimento de educação para o caráter ser apresentado como tendo origem no início do séc. XX, a verdade é que retomam uma ideia que já remonta à época clássica greco-romana. Já os gregos davam grande importância à educação do espírito, que deveria ser feita pela música e pela poesia. A música (arte das musas) implicava a formação moral, religiosa, estética e dos afetos (formação do caráter). Homero, nos seus poemas épicos incitava à imitação dos heróis, os jovens deveriam ser educados tendo os heróis como modelos, que eram o exemplo máximo de uma boa formação do caráter. A educação espartana, muito direcionada para o treino militar intenso e prolongado, não descuidava o treino da vontade e o autodomínio, tudo visando a formação do carácter do cidadão. A educação ateniense tinha duas finalidades: o desenvolvimento de um cidadão fiel ao estado, e a formação de um carácter harmonioso e com domínio e controlo das suas próprias forças e capacidades. Aristóteles proclamava uma educação das virtudes, para a boa formação de caráter dos jovens. A educação romana visava fundamentalmente a formação do carácter moral das pessoas para dar à cidade bons cidadãos. Por isso é que Cícero pôde escrever que “A melhor das heranças que os pais podem deixar aos filhos, mais valiosa do que todo o património, é a glória da sua virtude e dos seus feitos, glória à qual deve ter-se por crime e injúria maculá-la” (Cícero, Dos Deveres, 2000: I.33.121).   
Assim, desde os nossos antepassados que o ser humano continua a ser o mesmo e com as mesmas necessidades e preocupações, isto é, no que à educação formativa diz respeito as necessidades são as mesmas. E uma boa educação moral vai refletir-se necessariamente numa boa formação de caráter, e é desde crianças se consegue ser bem-sucedido ou não num qualquer processo educativo e formativo. A educação e a formação moral e do caráter deve começar desde criança e preservar-se ao longo da vida. Os mais velhos devem ter uma atitude de vigilância e presença atuante na formação dos mais novos, exigindo a correção atempada de comportamentos errados ou incorretos, ou seja, o exemplo dos mais velhos é indispensável, no sentido de criar bons hábitos, e de levar os jovens a compreenderem, ao longo do seu crescimento, porque é que as coisas são assim e não de outra maneira.
Da mesma forma, a escola deve ter uma intervenção direta na educação moral dos alunos, dando seguimento ao “trabalho” que é realizado em casa pela família. A escola deve ser o local onde os alunos obtêm os mecanismos da socialização, onde o professor é o agente da formação social e cívica do aluno.
    
  
         Ricardo Carvalho



                 Bibliografia

CUNHA, Pedro D’Orey (1996), Ética e Educação, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa