terça-feira, 19 de março de 2013

Didática - Materiais Didáticos de Filosofia



                O conceito de didática

              Para conseguirmos chegar a uma conceção de materiais didáticos, temos primeiro de indagar acerca do conceito de didática. Uma definição consensual define a didática como a arte, ou técnica, de ensinar, aplicação dos preceitos científicos que devem orientar o ensino, tornando-o prático e eficiente. Atualmente, pensadores e educadores concebem ideia de que a didática é o estudo do método de ensino e aprendizagem que concebem formas de organização do ensino, uso e aplicação de técnicas e recursos pedagógicos, controle e a avaliação da aprendizagem, atitude do professor perante o ensino.
            Coménio, com a obra Didática Magna, pode ser considerado o fundador da didática, ou pelo menos foi o primeiro pensador a teorizar a didática, a estabelecer os princípios de ensinar tudo a todos, de criar regras e princípios para difundir o conhecimento.

«A proa e a popa de nossa Didática será investigar e descobrir o método segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendam mais: nas escolas haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inútil, e, ao contrário, haja mais recolhimentos, mais atrativo e mais sólido progresso; na Cristandade, haja menos trevas, menos confusão, menos dissídios, e mais luz, mais ordem, mais paz, mais tranquilidade.»

      Se pensarmos nos diversos saberes, certamente que vamos encontrar aspetos didáticos comuns a todos eles. Mas, de igual forma, com certeza que será possível encontrar aspetos didáticos com caraterísticas próprias de cada saber. Ora, a Filosofia não é exceção, nela podemos encontrar aspetos didáticos comuns a outros saberes, mas também apresenta características didáticas próprias. São, sobretudo, estas últimas que mais me interessam, uma vez que são as suas características didáticas próprias que se vão adequar à especificidade da filosofia enquanto saber – o mesmo acontece com as outras áreas do saber. 
         No meu entender, e ao contrário do que muitos consideram, a filosofia não representa uma área especial do saber. É uma área com características muito próprias, isso sem dúvida, mas muitas outras áreas do saber também apresentam as suas características muito próprias. A generalidade dos saberes são incomensuráveis, pelo que não deve existir um predomínio ou privilégio de determinados saberes sobre outros. Neste sentido, encontrar uma didática própria da filosofia é fundamental, não por esta ser especial, mas porque o seu conteúdo é diferente.  
        A filosofia não se debruça sobre um aspeto particular da realidade, antes toma a realidade como um todo, e talvez seja este o aspeto que mais a distância dos outros saberes. Os conteúdos próprios da filosofia são de algum modo temas muito gerais, que implicam todos os seres humanos, e em que cada um terá a sua forma peculiar de os apreender. Daqui resulta a singularidade didática da filosofia.
           A filosofia trata de temas específicos da formação do homem enquanto ser-humano. O homem social, político, religioso, moral, estético, etc., são alvo de reflexão e análise na filosofia, ou seja, são temas que dizem diretamente respeito a todos os alunos, em que todos eles, de uma forma ou de outra, se identificam com esses aspetos. O sentido da vida, o amor, a amizade, a validade dos valores, são outros temas com que os alunos diretamente se identificam. A natureza dos temas da filosofia, não fazem desta uma área especial, mas fazem com que seja uma área em que se tem de ter especial atenção e cuidado à transmissão dos conteúdos. Diria até mesmo, que é necessário uma maior responsabilidade no ensino da filosofia. Não uma responsabilidade no sentido do rigor académico e científico – isso é transversal a todas as áreas – mas uma responsabilidade moral, isto é, um professor aos ensinar ética, pode ensinar várias éticas, ao ensinar religião, pode pender para qualquer religião, e assim sucessivamente em todos os temas. O que quero dizer é que, sendo os temas de filosofia inerentes a todos os seres humanos, e tratando de temas que envolvem a formação do homem enquanto ser humano, existe sempre o risco do professor de filosofia cair na sua subjetividade, e com isso servir de modelo aos alunos. Estamos a falar de alunos com idades compreendidas entre os 15 e 17 anos, e que podem facilmente ser manipulados, e mesmo sem o propósito da manipulação, facilmente adotam o modelo, ou o ponto de vista que o professor lhes apresentar como mais ajustado. Estou a pensar por exemplo, num professor que seja nazi, e que nas suas aulas apresenta a ética sobre o ponto de vista do nazismo. Ou, por exemplo, um professor que aponta como sentido de vida o ideal judaico ou cristão. É neste sentido que falo de uma maior responsabilidade do professor de filosofia. Assim, e contrariando de alguma forma aquilo que atrás tinha defendido, parece que emerge de facto uma necessidade didática muito especial na filosofia. Contudo, não é mesma coisa dizer que a filosofia requer uma didática especial, e dizer que a filosofia é especial comparativamente com os outros saberes. 

            Didática e a Filosofia

Encontrar um método didático que tenha em conta esta especificidade da filosofia é aquilo que qualquer professor deve fazer. «Como lidamos com ela? Qual o instrumental teórico que nos permite lidar com essa característica de nossa disciplina? Uma didática da filosofia, a meu juízo, inclui questões como essa, que diz respeito ao nosso treinamento profissional para tratar da aproximação (inevitável, ao que parece) e do distanciamento (necessário, ao que penso) entre o professor e o aluno de Filosofia que são provocados pela própria natureza da disciplina.» (Ribas, Meller, Rodrigues, Gonçalves e Rocha, 2005: 165)[1].
Hoje, na educação, existe uma grande preocupação em promover nos alunos um pensamento autónomo, preciso e bem estruturado. O aluno deve ser dotado de uma capacidade para pensar bem e formar o seu próprio pensamento. Todas as disciplinas devem-se orientar para esta finalidade, devem ter presente esta preocupação. A filosofia teria assim a “vida” mais facilitada em relação às outras disciplinas, uma vez que, e segundo aquilo que julgo, sempre foi este o propósito do ensino filosófico. Contudo, a questão não é tão linear como à partida parece supor. Há vários modos de se ensinar na filosofia, podemos, por exemplo, optar por um ensino mais enciclopédico, transmitindo apenas a história da filosofia, ou então, optar por uma transmissão mais de carácter formal, isto é, transmitir a filosofia tendo apenas em conta os grandes problemas com que esta se deparou ao longo da sua história, ou ainda, por exemplo, podemos optar por ensinar de forma a dotar os discentes de ferramentas filosóficas que lhes permitam formar o seu próprio pensamento e que percebam por eles a natureza aberta e especulativa da filosofia. Apesar de considerar a última opção a mais adequada, julgo que não se pode menosprezar nenhuma delas, e optar apenas por uma destas opções seria negligenciar uma parte importante da filosofia. Encontrar uma didática que permita conciliar as três seria o ideal de transmissão de um saber como a filosofia.      
Esta questão não é nova na filosofia, basta lembrarmos as palavras de Kant quando afirmava na sua reflexão acerca do que é a filosofia? «De mim não aprendereis filosofia, mas antes como filosofar, não aprendereis pensamentos para repetir, mas antes como pensar». Ensinar filosofia ou ensinar a filosofar? Dar ênfase ao conteúdo ou à forma? Esta é uma questão que é incontornável acerca da possibilidade de ensinar filosofia.[2] Para se poder ensinar filosofia é preciso entender que relação se estabelece entre filosofia e pedagogia. Se pensarmos na doutrina socrática podemos concluir que Sócrates compreendeu esta relação e encontrou um fundamento para o ensino e aprendizagem da filosofia. Sócrates terá encontrado um método didático que ensina filosofia e a filosofar. Cabe agora encontrar uma forma de todos os professores de filosofia o conseguirem também.

«A filosofia deverá ser a única disciplina que tem em si os fundamentos da sua própria pedagogia, mas é preciso compreender como e porquê. A sua especificidade exige uma didática adequada, e esta exige uma abordagem que tem que passar pela filosofia. Mas a chave desta passagem está na pedagogia porque só ela cria as condições em que a síntese se obtém. Assim, podemos dizer que esta especificidade só é vista e compreendida depois de percebida a relação filosofia - pedagogia.» (Boavida, 1996: 93)

            Se não formos capazes de entender a relação que se estabelece entre filosofia e pedagogia, corre-se o risco de se entrar numa pedagogia cuja preocupação é apenas ensinar um corpus de conhecimentos, que é mais característico das outras disciplinas, mas que não atende à especificidade do ensino da filosofia. Tal como acontece na maioria das outras disciplinas, a pedagogia seria apenas transmissiva e expositiva. Ou seja, através apenas da pedagogia tradicional não vamos encontrar a didática específica da filosofia, é necessário algo mais. Isto porque, nas outras disciplinas o problema ensino-aprendizagem não afeta a natureza do saber em questão, ao passo que, na filosofia, isso pode efetivamente acontecer. A forma de ensinar e aprender filosofia pode ter interferência sobre a própria filosofia, ou seja, aquilo que se ensina ou aquilo que se aprende[3], pode propiciar diferentes faces do que se entende por filosofia. Aqui entra a jogo a questão que já antes foi tratada[4], ou seja, ao modo de ensinar filosofia está – e maior parte das vezes isso acontece – subjacente uma determinada conceção de filosofia, que depois passa por se praticar ou não praticar.
            É a partir daqui que se estabelece a relação profunda entre filosofia e pedagogia, entre o que se deve e como deve ensinar em filosofia. Um professor de filosofia, antes de começar a sua prática pedagógica deve refletir primeiro acerca deste tópico: o que ensinar, e qual o modo de o fazer. A estas questões seguem-se outras duas: a quem vou ensinar e para quê.      
            Para dar respostas as estas questões é necessário estabelecer quais os objetivos de um ensino filosófico. Podemos estabelecer dois conjuntos de objetivos: os gerais; aqueles que se apresentam definidos como os grandes objetivos e que aparecem prescritos em todos os documentos orientadores, são objetivos como o civismo, a obediência aos princípios, tanto éticos como racionais, a capacidade intelectual acrescida, a interiorização e prática dos valores, etc. (cf. Boavida, 1996: 102). E os objetivos mais restritos ou específicos; aqueles que mais diretamente dizem respeito à disciplina de filosofia, objetivos como a capacidade de fomentar o espírito crítico e reflexivo nos alunos, formar jovens de pensamento autónomo, de capacidade de análise e de síntese, de problematização e compreensão dos conceitos fundamentais, do inconformismo perante o dado, etc. Os objetivos mais gerais reúnem um grande consenso e podem ser extensivos a outras áreas do saber, são entendidos como a formação de base. São grandes desígnios com que toda a gente concorda mas que a sua operacionalização nem sempre é acessível ou confirmada, «um objetivo geral tem um carácter relativamente extensivo e designa um resultado a atingir a médio prazo» (Vandevelde, apud Boavida, 1996: 109). Muitas das vezes os professores não encontram os meios necessários para atingir esses objetivos, chegando ao fim do percurso sem os ter alcançado. É através de objetivos mais “modestos”, mais restritos, que é possível traçar o percursos para atingir os objetivos mais gerais. Isto porque, quanto mais restrito for o objetivo, mais funcionalidade vai adquirir, a sua operacionalização será mais acessível. Para se atingir grandes metas é necessário ir conquistando metas mais pequenas. Os objetivos mais restritos acabam por ser absorvidos pelos objetivos menos restritos, e é aqui que reside o sucesso da pedagogia.    
            Mas, e na minha opinião, é a partir daqui que surge o grande problema da didática da filosofia, ou do método ensino-aprendizagem na filosofia. A especificidade da didática da filosofia atinge aqui o seu ponto alto. Porquê? Se analisarmos os documentos orientadores da disciplina, vamos encontrar os objetivos gerais, se analisarmos os manuais ou as diretivas que determinam a finalidade da disciplina vamos encontrar os objetivos mais restritos. Até aqui não há qualquer problema. Este só surge quando se começa a definir qual a estratégia pedagógica e didática a escolher. Isto porque depararmo-nos com um dilema, em que temos de optar se queremos formar jovens de pensamento crítico e autónomo, e logicamente rigoroso, ou se vamos formar jovens que sejam sensíveis e respeitadores dos grandes valores e das grandes estruturas racionais da nossa cultura? (cf. Boavida, 1996: 104). Isto apresenta-se como dilema porque a estratégia pedagógica e didática a adotar é diferente para uma ou para outra. Mesmo por detrás de cada uma destas estratégias vai estar uma determinada conceção de filosofia, o que envolve aqui também um problema de definição de filosofia, ou de ensino filosófico.   
               No meu entender, os objetivos filosóficos que devem ser delineados no âmbito do ensino-aprendizagem da filosofia, passam por ambicionar que os jovens adquiram uma consciência crítica face ao lugar e às circunstâncias, e adquiram a capacidade de pensar filosoficamente sobre os mais diversos aspetos do real ou do que se manifesta à consciência. Que perante problemas se posicionem de forma adequada, racionalizando e compreendendo os aspetos gerais e abstratos, que saibam ser coerentes. «Que o aluno (…) se posicione de certa maneira face às situações, e que adquira uma formação filosófica decorrente destas situações e em consonância com elas. Isto é, que se implique efetivamente, sinta necessidade de pensar e de ver claro, em suma, que crie exigências e desenvolva sentimentos e hábitos intelectualmente úteis, e sem os quais toda a informação filosófica que possa vir a receber será inútil» (Boavida, 2010: 170). Estes objetivos podem ser dispostos por três níveis, como assevera Boavida, três níveis de objetivos gerais para a filosofia: intelectuais, afetivos e expressivos. Os intelectuais e afetivos subdividem-se em três subníveis, os primeiros em: atitudes, hábitos e aquisições, e os segundos em: atitudes hábitos e exigências. Já os expressivos subdividem-se em dois níveis: rigor e adequação terminológica e correção sintática.[5] (cf. Boavida, 2010: 170,171).    
            Todos estes objetivos requerem condições concretas, ou seja, apenas as intenções não são suficientes para operacionalizar estes objetivos. É necessários encontrar meios de transmitir aos alunos estes propósitos, de modo a que possam adotar uma atitude filosófica e exercer atividades filosóficas.

            Materiais didáticos

É neste âmbito que entram especificamente os materiais didáticos. Antes de discorrer acerca dos materiais didáticos apropriados ao ensino da filosofia, é necessário esclarecer alguns aspetos: o conceito de material didático; o objetivo dos materiais didáticos e a sua utilidade no processo de ensino-aprendizagem. O conceito de material didático pode ser entendido como um produto pedagógico utilizado na educação e, especificamente, como o material educacional que se concebe com uma finalidade didática. Segundo Zabala o recurso a todos os meios que de alguma forma auxiliam os professores a expor aos conteúdos ou a resolver os problemas que emergem em aquando da planificação, execução ou avaliação das aprendizagens, podem ser considerados materiais didáticos ou curriculares. Ou seja, são «meios que ajudam a responder aos problemas concretos que as diferentes fases do processo de planeamento, execução e avaliação lhes apresentam» (Zabala, 1998: 168). A finalidade destes recursos será o de «orientar, guiar, exemplificar, ilustrar, propor e divulgar» (Zabala, 1998: 168). A noção de material didático, será desta forma bastante ampla, isto é, inclui tudo o que o professor possa utilizar na sala de aula. Esta é uma perspetiva com a qual eu concordo.
            Concordo também com a tipologia que Zabala faz no que aos materiais diz respeito. Esta tipologia assenta em quatro parâmetros: o âmbito de intervenção, a intencionalidade, os conteúdos e o tipo de suporte. No âmbito da intervenção estamos perante as diversas formas que os professores têm de intervir, e dizem, sobretudo, respeito aos aspetos mais gerais que envolvem o sistema educativo, tais como o projeto educativo (PE), etc. A intencionalidade prende-se com a função do material a utilizar, tais como as descritas acima, orientar, guiar, exemplificar, etc. São materiais que norteiam o professor na tomada de decisões (exemplo: livros e artigos), são materiais que habitualmente servem de suporte a outros materiais. Os conteúdos, tal como o próprio parâmetro indica, relaciona-se com o tipo de conteúdos que o professor pretende desenvolver (por exemplo: fichas formativas, programas de multimédia, etc.). Por último, temos o tipo de suporte a utilizar, (por exemplo: o quadro, livros, revistas, slides, vídeos, etc.)    

            Ricardo Carvalho

Bibliografia

RIBAS, M., MELLER, M., RODRIGUES, R., GONÇALVES, R., ROCHA, R., (org.) (2005), Filosofia e Ensino – A Filosofia na Escola, Unijuí (Brasil), Editora Unijuí 

BOAVIDA, João (1996), Por uma didática para a Filosofia, Coimbra, Revista Filosófica de Coimbra nº 9

BOAVIDA, João (2010), Educação Filosófica, Coimbra, Editora IU

ZABALA, A. (1998), A Prática Educativa: como ensinar, Porto Alegre, Editora Artes Médicas


[1][1] Apesar da citação, devo advertir para o facto de os autores não partilharem o meu ponto de vista inicial quanto ao estatuto da filosofia. Para estes a filosofia é efetivamente um saber especial que requer uma didática também ela especial. Eu considero que a filosofia é um saber como tantos outros, que apenas requer uma didática especial centrada na responsabilidade moral do seu ensino.
[2] Esta questão não diz apenas respeito a uma preocupação pedagógica do ensino da filosofia, mas conduz-nos também à questão de pensar e de realizar a própria filosofia. Leva-nos a indagar o próprio sentido da filosofia. Este problema tem acompanhado o próprio pensamento filosófico ao longo dos séculos, pelo que não é um assunto que possa abordar aqui de forma exaustiva, porque não é esse o propósito do trabalho.
[3] Esta distinção entre aquilo que é ensinado e aquilo que é apreendido pelos alunos é pertinente no sentido de nem sempre a clareza das ideias no professor significar clareza de ideias nos alunos, ou transmissão correta do professor não significa obrigatoriamente uma correta assimilação por parte dos alunos. Isto coloca em causa a própria definição de filosofia, porque aquilo que um aluno assimilar vai fazer com que ele formule um determinado conceito de filosofia.
[4] A questão da responsabilidade moral de ensinar filosofia que os professores devem ter em conta.
[5] Em anexo encontra-se o quadro esquemático apresentado por Boavida.