terça-feira, 1 de maio de 2012

Kant e a moralidade!

No imperativo moral a lei não decorre da experiência, tem de ser anterior a ela, tem de ser a priori, senão não se podia julgar a experiência. A moralidade kantiana define-se também pelo seu apriorismo. Tem de ser assim mesmo, porque a razão que conhece os fenómenos é a mesma razão que estabelece os princípios da acção, o uso dela é que é diferente. E é diferente porque uma diz respeito ao conhecimento e a outra diz respeito à acção. Contudo, nem sempre a acção é guiada pela razão, porque o homem não é um ser puramente racional. O ser humano está sujeito às inclinações, tem inclinação para a animalidade, para a humanidade e para a personalidade, só esta última é verdadeiramente moral (age de tal maneira que tomes sempre o outro como um fim e nunca como um meio), este princípio diz respeito à terceira inclinação, as outras duas não são por si más, só são más quando se desviam ou não se deixam orientar pela razão. Isto é o imperativo moral do princípio da acção como máxima, de acordo ou com o respeito à lei moral. Os imperativos podem ser de vários tipos, mas o imperativo moral é o imperativo categórico. É categórico porque é apodíctico, ou seja, não admite qualquer tipo de dúvida, é uma acção considerada objectivamente necessária, é uma acção que não tem referência a qualquer tipo de finalidade, é uma moral não teleológica.
Kant diz como é que eu devo e não o que devo fazer, o imperativo é universal na sua forma, não é de natureza substancial ou material. A preocupação é puramente formal – age sempre de tal maneira que a tua máxima da acção seja lei universal – temos de tornar operativa esta forma, e fazemos isso perguntando sempre se o princípio da acção pode ser universal, se não há contradição. Com esta concepção de imperativo com a ideia de universalidade, Kant está a chamar atenção para o facto de a razão não poder deixar de ser universal, por isso é uma moral racional. Assim, o imperativo tem 3 redações, a primeira é;
Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade em lei universal da natureza. (princípio da universalidade),
a segunda é;
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio. (princípio da finalidade),
a terceira é;
Age de tal maneira que a tua vontade se possa considerar como sendo a autora da lei universal à qual se submete. (princípio da autonomia).
A máxima é o princípio subjectivo da acção, é aquele princípio que elejo como princípio da acção. Quando a vontade busca a lei que deve determina-la em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal, a acção torna-se imoral. Estamos no domínio da heteronomia, seria uma vontade heterónima, há um princípio que é exterior a mim que me determina. A autonomia da vontade significa a assunção de mim enquanto eu sou capaz de determinar o próprio princípio, ou seja, enquanto a máxima contribui para a legislação universal, ser capaz de a si próprio dar a lei, só assim é que eu sou autónomo.
Para Kant tudo se fundamenta num conceito, que é o conceito de liberdade. A liberdade para Kant é a rátio essendi da lei moral, é a razão de ser da moralidade e a lei moral é simultaneamente a rátio cognóscente da liberdade. Só um ser livre pode ser um ser moral, uma pedra não pode. Eu sei que é assim pela lei moral, é pelo facto de eu agir de tal maneira que a máxima da acção seja princípio universal que eu sei que sou livre. Autonomia e liberdade são sinónimas.
A todo o ser racional que tem uma vontade temos de admitir necessariamente também a ideia de liberdade sobre a qual ele igualmente pode agir. Só há vontade autónoma sobre a ideia de liberdade. Somos livres, porque o ser que a si próprio dá a lei é o autor da lei, e por isso a liberdade é o último fundamento da moralidade.
Este pensamento de Kant conduz-nos àquilo que ele considera como uma das questões fundamentais da ética, que é o problema daquilo que ele chama o reino dos fins. O homem aparece-nos como seres racionais que se apresentam como fins em si mesmo. O homem apresenta-se nesse reino de fins como membro. Neste reino, o homem enquanto dá as leis é um ser soberano, enquanto obedece às leis que a si próprio deu é súbdito.
Então, tendo em conta o reino de fins, como relacionar este facto que é apodíctico, a priori, universal e necessário, com uma outra apetência que caracteriza também o ser do homem que é a apetência para a felicidade. Kant constata que todos os homens procuram a felicidade. A felicidade não deve ser o princípio determinador da vontade, a felicidade deve é ser consequência dessa determinação. O que é então a felicidade? A felicidade para Kant consiste no máximo de bem-estar no meu estado presente e em toda a condição futura. A felicidade para Kant apresenta um carácter formal do conceito. Assim, a procura da felicidade por si não é ilegítima, a felicidade é algo a que podemos aspirar, mas nunca como fim da moralidade. A ideia de felicidade varia de época, de lugar, varia de idade, etc. Neste sentido a ideia de felicidade é a posteriori. Enquanto a felicidade é da ordem da experiência, a moralidade não é. Não sabemos os meios pelos quais conseguimos alcançar a felicidade, e todos aqueles meios que nós usamos tendo em vista a obtenção da felicidade geram imperativos, prudências, imperativos hipotéticos, mas nunca imperativos categóricos. Em suma, a felicidade não pode ser critério de moralidade.
Desta forma, a moralidade e a felicidade conjugam-se considerando a subordinação da felicidade à virtude, ou seja, da subordinação da felicidade à moralidade. Se assim não fosse, estaríamos a subordinar a razão à experiência, e isso era o fim da moralidade. Kant vai dizer que nunca posso ter a certeza de que sou feliz, ou de que serei feliz, mas posso dizer que aspiro à felicidade. Assim, Kant, ao relacionar virtude com felicidade vai afirmar que são realidades distintas, o laço que une a virtude à felicidade não é um laço analítico, mas é sintético, ou seja, um laço que supõe causalidade. Isto é, para Kant é feliz o virtuoso e não o contrário. É porque eu sou virtuoso que posso aspirar à felicidade. Só a virtude pode levar à felicidade.
Assim, Kant pensa que pela via moral estamos obrigados a trabalhar pela realização do soberano bem, isto é, estamos obrigados a trabalhar na união entre virtude e felicidade. Desta forma, o soberano bem consiste na união entre virtude e felicidade. Nesta perspectiva para se ser feliz deveríamos ser santos, ou seja, devíamos ser um ser que não seja determinado por nada que não fosse o facto simplesmente da moralidade. Mas para Kant os seres humanos não são capazes, logo, vem os postulados da razão no seu uso puro prático. Os postulados são algo que eu admito como verdadeiro porque decorre da própria condição em que eu sou. Se eu sou obrigado a trabalhar pelo soberano bem, tenho de admitir uma coisa, se cá na terra não conseguimos fazer isso inteiramente, tenho de fazer isso noutro lado, sob pena da moralidade não fazer sentido nenhum. Tenho de admitir que a imortalidade da alma é real, para que durante todo o resto da minha vida para além da vida da terra, eu seja capaz de realizar o soberano bem.

Ricardo Carvalho
(Agradeço ao Prof. Eugénio Peixoto pelas valiosas aulas sobre Kant)