sexta-feira, 2 de março de 2012

Educação, democracia e cidadania.

Hoje a educação assume cada vez mais um papel crucial na relação entre democracia e cidadania. O século XX marca uma metamorfose na história da escola, ocorre uma massificação do ensino[1], as escolas que até então estavam confinadas a uma elite social, começam a ficar abertas a todos[2]. A era moderna, muito marcada pelo multiculturalismo e pela globalização, assiste a uma evolução tecnológica colossal, à automatização das empresas, ao predomínio dos mercados financeiros, o que acarreta como consequência direta a transformação do modo de se trabalhar e naturalmente isso faz com que a sociedade se altere e com ela a educação. O pensamento pedagógico começa a estar cada vez mais circunscrito à pressão intensa que o discurso sociológico exerce, é um bom exemplo o pensamento de Durkheim, que afirma que a pedagogia depende da sociologia mais que qualquer outra ciência. Em termos políticos predomina o neoliberalismo democrático. Por política os sociólogos entendem o conjunto de mecanismos desenvolvidos por uma sociedade para dar resposta aos seus problemas sociais, e que se caracterizam pela tomada de decisões relativamente aquilo que é o bem comum e em garantir o cumprimento das ações decididas. Contudo, presentemente os mecanismos políticos são tão complexos que a sociedade acaba por se sentir impotente perante eles. Para os cidadãos poderem intervir politicamente têm de formar grupos de pressão, caso contrário, o cidadão comum não terá acesso direto ao poder.
 As sociedades contemporâneas são dominadas pelo designado “Tripé Social”: Estado, Mercado e Comunidade. Nesta relação de forças o predomínio deveria estar colocado sobre a Comunidade, seguido do Estado e por fim os Mercados. Sucede que esta relação perverteu-se e acontece precisamente o oposto; são os Mercados a reger as sociedades com os Estados a governarem em prol deles e as comunidades são subjugadas pelo seu jogo de interesses. O liberalismo trouxe consigo o capitalismo, após a revolução industrial assistiu-se a uma expansão impetuosa do capitalismo. As democracias paulatinamente deixaram de ser o governo do povo, pelo povo e para o povo, para passarem a ser o governo dos mercados, para os capitalistas e pelos capitalistas. Isto fragiliza a soberania dos Estados-nações, que deixam de ser governados pelo governo eleito pelo povo, para passarem a ser governados pelos Bancos Mundiais ou pelo Fundo Monetário Internacional, o que leva a uma insatisfação ainda maior por parte dos cidadãos.
A partir de meados do século XX começou-se a intensificar a influência da economia capitalista global nas políticas públicas de educação. As políticas pedagógicas passam a ser dominadas pela economia, a preocupação da educação já não é formar cidadãos com sentido crítico e espírito de participação, mas antes formar indivíduos especializados conforme as necessidades do mercado. O telos da educação não se encontra na formação do cidadão global mas antes na empregabilidade individual e aquisição de competências. Os valores estão pervertidos, prevalecendo agora os valores do mercado competitivo. Este tipo de educação, baseada em motivações económicas, conduz a uma educação da competição[3], “competir para progredir”. A educação nas escolas tornou-se individualizada, sem qualquer preocupação com o melhoramento social. As escolas são vistas como parceiras sociais dos mercados, em que impera igualmente o sentido de competição entre si[4], “competição entre fornecedores”. Este princípio da competição leva a uma cidadania fracionada, contrária ao ideal de cidadania democracia, que se quer com espírito de participação baseado numa educação crítica, que permita espaço para a discussão argumentativa e de cariz coletiva.
 A conceção moderna de cidadania foi constituída a partir de três momentos distintos. Teve origem no século XVIII, a partir da aquisição de direitos civis[5], e é complementado no século XIX com a aquisição dos direitos políticos[6] e no século XX com a aquisição dos direitos sociais[7]. Aquilo que era apanágio da educação para a cidadania, isto é, a educação saída das teorias democráticas como participação (próxima dos conceitos demoliberais) que visavam, sobretudo, uma conceção de cidadania assente nos direitos acima referidos, revela-se agora suprimida desses direitos, o que fere de “morte” a ideia de cidadania democrática. Hoje em dia assistimos a um “paradoxo social” que está a abalar as sociedades; cada vez mais assiste-se aos apelos de uma melhor democracia para a cidadania e garantia dos direitos, e simultaneamente deparamo-nos com constantes regressões sociais, perdas de direitos e de restrições à prática de cidadania. Com o predomínio económico “os direitos dos cidadãos passam a ser os direitos do consumidor” (Whitty, 2002: 87). Atualmente os governos democráticos iludem o povo dando-lhe a atender que a soberania está nas suas mãos quando na verdade o povo apenas se limita a escolher (de forma limitada) quem o vai manter sob o jugo dos mercados. Os cidadãos estão transformados em “consumidores políticos”, estando completamente afastados das decisões de poder. Os governos deixaram de ter como propósito o bem comum e a vontade geral. Por democracia entende-se, hoje, apenas a possibilidade que o povo tem para aceitar ou recusar quem o vai governar.     
        Sem uma educação democrática voltada para a participação da cidadania as massas tornaram-se amorfas. Prevalecendo uma sensação de impotência perante a robustez do capitalismo, o que levou ao desânimo das massas ao ponto de se deixarem dominar por completo pelos governos. A contestação deixou de fazer parte do idioma do povo, que aos poucos se “deixa ir” na corrente sem se preocupar com isso. Não sabe mas também não quer saber, não aprende mas também não quer aprender. Nasceu para ser dirigida e sente-se bem com isso, não se questiona nem se importa com o passado. As massas tornaram-se incompetentes, e regozijam-se com o facto de existir alguém que as dirija e governe, comportam-se como rebanhos de ovelhas atrás do pastor, apesar de terem a liberdade para não o fazerem. Com o constante desenvolvimento e aperfeiçoamento capitalista as sociedades entraram num estado de anomia, generalizou-se um sentimento de incapacidade perante as transformações do mundo moderno, a falta de objetivos e de identidade prevaleceram nas sociedades. Facto que conduziu ao estado atual de “abstenção” de sentido de Estado. A sensação de um Estado omnipotente domina a “consciência social”, o conceito de participação desapareceu por completo do espírito de cidadania, é como se imperasse o axioma “participe que as coisas vão ficar na mesma”.        
Embora a educação não represente o âmago da questão, porque isoladamente não consegue democratizar a sociedade e instituir a cidadania, ela constitui um veículo ou um instrumento essencial a esse propósito. “Se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante” (Freire apud Lima, 2005: 12). Para a escola assumir um papel ativo numa educação democrática é necessário, antes de mais, que a sociedade mude, que os seus cidadãos adotem uma atitude ela mesma democrática com sentido de participação cidadã, porque é preciso salientar que a escola é fruto da sociedade e é dela que retira os seus recursos, logo, não se pode incutir à escola a responsabilidade dos “pecados” da sociedade como também não se lhe pode exigir o papel de redentora. A escola tem “por função primeira criar a comunidade, ou seja, dará a todos a bagagem comum de conhecimentos, de técnicas, de sentimentos que constituem uma nação e, mesmo mais amplamente, a humanidade” (Derouet apud Crahay, 2000: 26).  
Nos últimos tempos temos assistido a fenómenos sociais que podem aludir ao despertar das massas, e que podem funcionar como a alavanca para o retomar da consciência e responsabilidade social de que tanto carecem as massas do último século. Refiro-me à Primavera Árabe, e às manifestações dos Indignados. A Primavera Árabe consistiu nos protestos sucedidos no mundo Árabe que culminaram numa onda de revoluções e manifestações civis ocorridas em diversos países do médio oriente. Estas manifestações tiveram como propósito contestar os regimes políticos autoritários, a corrupção, o desemprego, em suma, foram protestos de índole social em que os cidadãos reivindicavam estados democráticos e o direito de participação dos cidadãos na vida pública das nações. A Marcha dos Indignados, ocorrida sobretudo no mundo ocidental, teve como principal propósito a reclamação de uma democracia real. Foi um movimento gerado contra a crise económica que afeta a maioria dos países ocidentais e que levou os diversos governos a exercerem uma austeridade severa sobre as suas sociedades.
Estes dois movimentos resultam de mais uma crise do capitalismo, que tem sabido sempre encontrar soluções para sair dessas crises reforçado, devido precisamente à inercia das massas que não encontraram forma de se rebelarem contra a hegemonia que o capitalismo exerce nas sociedades. Porém, face a estas novas manifestações o capitalismo parece ainda não ter encontrado uma forma de saída eficaz. O mau estar que as populações sentem tem conduzido a constantes manifestações empreendidas – um pouco por toda a parte e envolvendo todas as classes e faixas etárias – contra o totalitarismo dos mercados.
Quer um quer outro fenómeno foram desencadeados a partir das novas tecnologia, nomeadamente a partir das redes sociais, algo que nunca tinha sucedido. As redes sociais quebraram as fronteiras, possibilitam uma interação direta e instantânea entre qualquer ponto do mundo. O mundo ficou transformado numa única aldeia, uma aldeia global. Já não existem ilhas sociais, os problemas de um país já não estão confinados ao seu povo, são agora os problemas dos vizinhos também, e vice-versa. Antes os problemas de um povo estavam circunscritos ao seu território, “podia-se arejar a atmosfera confinada de um país abrindo as janelas que dão para outro. Mas agora não serve de nada este expediente”[8], deixaram de haver janelas, o espaço é agora um todo. Isto originou um novo conceito de organização social. As redes socias permitiram que os cidadãos se organizassem, comunicassem e sensibilizassem como nunca antes tinha sucedido. É certo que já existiam os sindicatos ou grupos organizados (políticos) que supostamente velavam pelos interesses dos cidadãos, mas esse tipo de organização era fracionada pelos interesses disperso na sociedade e tinham sempre um cariz ideológico subjacente. Este novo tipo de organização é global, apartidário e laico, o que permite uma participação total da sociedade. Os cidadãos não se reviam nesses grupos organizados, daí imperar um sentimento de anomia social, mas com esta nova realidade que as redes sociais proporcionaram, os cidadãos viram aqui uma janela que lhes poderá possibilitar ter uma voz ativa na vida pública e alcançar a democratização da sociedade. Os governos ficaram transparentes, ou seja, todo o expediente de um governo pode ser “fiscalizado” e controlado por todo o mundo. Estes fenómenos conduziram os cidadãos a um novo conceito de cidadania.
        Todo o mal de que as sociedades presentes padecem fica a dever-se à alienação que os seus cidadãos patentearam nas últimas décadas quanto à participação na discussão dos assuntos públicos e políticos. Agora que parece que se reacendeu a vontade de participação dos cidadãos na vida faltam as ideias. As manifestações têm-se apoiado mais em sentimentos que em ideias. Estes movimentos defendem uma verdadeira democracia[9], mas não nos fornecem uma ideia do programa que pretendem, são muito perspicazes a denunciar os defeitos da política atual, mas não apresentam alternativas válidas que alterem para melhor o cenário político. E isto deve-se precisamente à falta de preparação que a sociedade atual evidencia relativamente a uma participação democrática da cidadania. Faltou durante muito tempo uma educação que preparasse os indivíduos para terem uma voz ativa no rumo das suas sociedades. Durante muito tempo este propósito esteve aliado das escolas, e ainda está muito distante de um cenário ideal. Desta forma, fica bem expressa a necessidade de uma política pedagógica baseada numa educação democrática para a cidadania. É fundamental uma educação que permita uma consciencialização, por parte dos cidadãos, da existência de determinados direitos, e uma instrução focalizada no sentido crítico e espírito participativo de forma que lhes permita reivindicar, caso seja necessário, esses direitos. É necessária uma educação que forme cidadãos ativos em vez de cidadãos passivos (que são apenas consumidores de uma cidadania da ordem do Estado), só desta forma se pode conseguir um novo tipo de cidadania. Hoje, falar de escola e de educação implica falar do desenvolvimento de capacidades de inserção, de perceção e de intervenção dos cidadãos na transformação social participada e reflexiva.
            Em termos democráticos seria negligente desprezar o contributo da educação para uma democratização da democracia. “A cidadania democrática ou é ativa e crítica ou não é radicalmente cidadania democrática.” (Lima, 2005:12)


[1] Esta massificação do ensino, que teve início no séc. XX, apenas se desenvolve plenamente a seguir à Segunda Guerra Mundial.
[2] A ideia de uma escola para todos já vem da antiguidade, mas até ao séc. XIX esteve sempre reservada a uma minoria de crianças. É com o séc. XX que esta tendência se altera.
[3] É disso exemplo o Processo de Bolonha, que foi a forma que a Europa encontrou de organizar o ensino superior de modo a poder competir com os Estados Unidos da América.
[4] Basta ver aquilo que se passa hoje nas comunidades escolares, com as preocupações a estarem voltadas para os rankings e as classificações.
[5] Englobam os direitos necessários à concretização da liberdade individual, como; liberdade de pensamento, religião, expressão, propriedade e justiça.
[6] Englobam o direito de todos os cidadãos participarem no exercício do poder político.
[7] Englobam o direito à segurança e a um mínimo de bem-estar económico, direito ao ensino e direito aos serviços sociais (saúde e segurança social).
[8] Citação de Ortega Y Gasset retira do seu livro Rebelião das Massas. O propósito de Ortega com esta citação era denunciar a existência de uma “pavorosa” homogeneidade de situações em que a Europa estava a cair. Os problemas agora eram de todos. Citação completa “Digo angustioso porque, com efeito, o que em cada país é sentido como circunstância dolorosa, multiplica até ao infinito o seu efeito deprimente quando aquele que o sofre se apercebe que quase não há lugar no continente onde não aconteça estritamente a mesma coisa. Antes podia-se arejar a atmosfera confinada de um país abrindo as janelas que dão para outro. Mas agora não serve de nada este expediente, porque no outro país a atmosfera é tão irrespirável como no nosso. Daí a sensação opressora de asfixia.” (pág. 10-11 do prólogo).
[9] As democracias representativas estão a perder vida o que leva as sociedades a colocarem em causa a sua legitimidade.


          Ricardo Carvalho