quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Crítica de Francisco Sanches à conceção platónica de ciência.


Francisco Sanches insere-se numa corrente ou num conjunto de orientações no âmbito da filosofia que desenvolve uma crítica à herança do pensamento escolástico inserido no ceticismo filosófico.
O pensamento filosófico de Sanches consubstancia um ceticismo radical e absoluto, o próprio título da obra Que nada se sabe pode indiciar isso mesmo, contudo em várias passagens da obra isso não fica claramente expresso, gerando alguma controvérsia entre aqueles que o acusam de um ceticismo radical, e aqueles que consideram que não, como é o caso de Joaquim de Carvalho. Segundo este, a obra Quod nihil scitur nas páginas finais desmentem o radicalismo absoluto de F. Sanches, o que ele procura realmente mostrar é a impossibilidade da ciência perfeita. J Carvalho reitera que o propósito de Sanches foi fazer uma crítica epistemológica ao saber que não se funde de forma imediata e exclusiva na experiência sensível, e se não mantenha nesses limites.  
O ceticismo de Sanches teve em vista diretamente a situação contemporânea da conexão do pensamento científico com a tradição da metafísica Aristotélico-escolástica.
Francisco Sanches ao afirmar que nada se sabe, não dirige isto ao saber em geral, ou seja, não pretende que seja uma tese absoluta sobre o saber humano em geral, não dirige o seu ceticismo a toda a forma de conhecimento, mas sobretudo a determinadas formas de conhecimento, que ele crítica, e a sua crítica tem laivos de modernidade. Isto pela forma como ele faz a crítica, os argumentos que ele usa para criticar o platonismo, que era muito influente no séc. XVI, na época do renascimento, ele apresenta argumentos no sentido de considerar que o platonismo não tem sustentação, não tem fundamentação tendo em conta o ponto de vista gnosiológico, e aqui está patente uma dimensão positiva. Há uma afinidade com o experiencialismo, mas de uma forma mais sofisticada, porque este autor conhece a fundo a escolástica e o humanismo. O ceticismo não era tanto um ceticismo absoluto, mas uma conceção muito centrada na análise do conhecimento sensível, a dimensão positiva referida atrás, acerca do conhecimento em F. Sanches, é que, no fundo, se há conhecimento, se é possível fundamentar o conhecimento, esse conhecimento tem de partir da experiência, da observação da realidade concreta. A Filosofia e a ciência derivadas de Platão e de Aristóteles haviam recorrido a universais para explicar o particular, cabia então, segundo Sanches, lançar a dúvida sobre tudo o que nascera sob esta conceção e situar o espírito exclusivamente no imediato e concreto dos dados da experiência sensível.   
 A teoria platónica do ponto de vistas dos universais é uma teoria realista forte que diz que no fundo conhecer é ter acesso às coisas em si. É por isso compreensível que Francisco Sanches critique a teoria platónica, porque do ponto de vista gnosiológico que ele sustenta, que é uma conceção marcadamente empirista, já há um princípio positivo.
Francisco Sanches sendo um empirista, que considera que se está constantemente a valorizar o conhecimento das coisas, da experiência, contra o conhecimento dos livros, contra o conhecimento metafísico, contra o conhecimento puramente verbal, etc., logicamente que o platonismo transcende esse conhecimento das coisas, é neste sentido que se torna previsível que Francisco Sanches rejeite a conceção platónica.
Francisco Sanches usa vários argumentos, critica a ideia de que conhecer é recordar, o facto de termos muita coisa na memória não significa que conhecemos as coisas ou que o conhecimento de recordar seja conhecimento certo. Outro argumento é que se aquilo que conhecemos diretamente pelos nossos sentidos, que é rejeitado pelos platónicos considerando que o conhecimento dos sentidos é enganador, é mais duvidoso ainda o conhecimento através da alma, para Sanches a alma está ligada ao corpo, pensar nela como estando fora do corpo é algo que é muito duvidoso.
Muitos afirmam que para sabermos basta que as coisas estejam em nós, Sanches ao analisar esta ideia chega à conclusão que o processo do saber não é assim tão simples, existem em nós muitas coisas que de facto não conhecemos como a alma, o intelecto, as faculdades etc. Contudo, até do ponto de vista do senso comum, diz-se que sabe muito aquele que tem muitas coisas na memória. Quando maior for a capacidade de memorizar e depois de recordar, mais se diz que essa pessoa sabe muito.
O facto de que aquilo que observamos, de muitas imagens e coisas estarem em nós, não significa que se possa considerar isso saber. Estamos constantemente a armazenar dados na memória com várias coisas e imagens, fazemo-lo a toda a hora, mas daqui não se segue que isto possa constituir ciência ou saber. Este processo de conhecimento, de contemplação de imagens tem um mecanismo de funcionamento simples que se inicia na observação, depois é feita a retenção de imagens na memória que posteriormente o espírito as contempla. Posteriormente o espírito envia de novo essas imagens para a memória, e aí ficam retidas. Uma vez retidas na memória, se ficarem bem fixas chamar-se-á hábito, caso não fiquem bem retidas chamar-se-á disposição. Muitos ao classificarem este processo como hábito deduziram a partir daí que a ciência seria isto mas, para Sanches, de forma errada chamam à ciência um hábito;

«Na verdade, o hábito é uma qualidade dificilmente alterável; a ciência não é uma qualidade, mas é antes um ato mental simples…», pág. 79.
           
Segundo Sanches, todo este processo revela claramente que dele não se pode retirar a definição de ciência. Quando temos as imagens em nós e mais tarde as recuperamos para delas fazermos uso, não se pode chamar a isto saber, mas antes recordar, ou seja, são coisas próprias da memória e não da ciência.
F. Sanches introduz este processo do conhecimento através da memória, precisamente para chegar à conceção platónica de conhecimento. A teoria platónica do conhecimento ou teoria da reminiscência, que assevera que conhecer é recordar, ou seja, conhecer é recordar os conhecimentos que a alma já possuiria numa vida anterior em que existia separada do corpo.
Segundo Platão, as ideias vêm de Deus, no qual existem substancialmente; encontram-se pré-formadas nas almas, antes da sua saída do Eliseu e da sua união com os corpos: as sensações mais não fazem do que provocar no espírito a sua reminiscência. Assim, nós não adquirimos as nossas ideias, segundo Platão; recordamo-nos delas. A ideia pura (ideal) de que cada objeto está em Deus; os corpos nada fazem senão reproduzi-la concretamente, de um modo mais ou menos perfeito, que a nossa alma, segundo a comunicação que recebeu, reconhece e aprecia. As ideias, grosso modo, são os eternos exemplares das coisas, os tipos ou modelos de que a nossa alma recebeu a marca e segundo os quais todos os seres foram criados.
Para Sanches esta conceção que Platão nos apresenta «não passa de uma agradável ficção nem confirmada pela experiência nem pela razão», pág. 80.
A refutação concreta à teoria platónica começa com alguma ironia, afirma ele que se Platão tivesse visto a sua alma, sabendo todas as coisas antes de ter entrado no corpo, então isso daria motivos para acreditarmos na sua teoria, em todo o caso, então, Platão não seria um homem, seria antes, isso sim, um espectro ou fantasma.
Como somos homens e não espectro ou fantasmas, temos de reconhecer que não sabemos o que existiu antes nós. É impossível comprovar a afirmação de que existiu algo antes de nós, ou melhor, que uma alma já existia antes de se unir a um corpo e formar cada homem que somos.
Contudo, Sanches usa formas mais hábeis para refutar Platão, pergunta ele;

«A alma, antes de entrar no corpo, sabia ou não sabia? Dizes que sabia; então, ou essa ciência da alma era sã recordação, ou não; se era, se era recebeu isso doutra que existia nela», pág. 80.

 Sanches questionou em seguida se o saber dessa outra não seria também recordação?
Esta estrutura de pensamento que Sanches apresenta contém o seguinte dilema; ou a alma antes de se juntar ao corpo já tinha o saber por o ter recebido de outra alma, e assim sucessivamente até ao infinito, ou então, tinha esse saber por si mesma, e se assim for, então, neste caso é porque se esqueceu do que sabia, logo, o saber adquirido não podia ser recordação. E mesmo no caso em que a alma se tenha esquecido do seu saber, antes de isso acontecer a alma sabia, e se sabia era por recordação. Desta forma, caminha-se de novo para o infinito.
Seguidamente, de forma astuta, F. Sanches agarra na definição de Platão – que diz que a alma ao juntar-se ao corpo se esqueceu do que antes soubera, e só depois de estar em conjunto com este se vai recordando – e afirma que a alma não sabe de novo, apenas se recorda e isso não é saber, tal como nós quando nos lembramos de alguma imagem que antes tínhamos contemplado, não chamamos saber a essas imagens que nos aparecem dessa forma, mas sim recordação. Da mesma forma, não somos capazes de memorizar tudo quanto contemplamos, algumas imagens recordamos outras apagam-se totalmente da nossa memória, já não sendo possível voltar a recordarmo-nos delas, a não ser que voltemos a obter uma nova impressão. Porém, se isto acontecer não temos uma recordação, mas sim uma nova impressão. Para exemplificar melhor, Sanches fornece o exemplo de certas doenças, que são capazes de nos fazer esquecer até do próprio nome, de quem somos, é como se toda a nossa memória fosse apagada. Este processo não é muito diferente do que Platão descreve quando a alma se junta ao corpo, só temos que supor que a doença quando chega e atinge o seu auge, fazendo-nos esquecer tudo, é como o momento em que a alma se une ao corpo. O ponto onde Sanches pretende chegar é que mais tarde quando estas pessoas que são afetadas por estas doenças voltam a aprender, não se dirá que isso é recordar, mas sim saber de novo, através de novas impressões, tal como o processo de aprendizagem de uma criança.
Todavia, pode haver quem refute esta ideia, afirmando que estes doentes ao terem novas impressões não estão a aprender, estão sim a recordar. E que agora aprenderam o que antes se esqueceram. Sanches contra argumenta que esta refutação aplicada a um adulto até pode fazer sentido, mas se o saber fosse só recordar, este exemplo aplicado a uma criança tornar-se-ia absurdo, tal como o doente a criança também aprende, mas é ridículo conceber que uma criança possa dizer “eu já sabia isto e agora me lembro”.
Outro absurdo para Sanches é afirmar que alma sabe, porque se a alma antes de se unir ao corpo é que sabia, então, depois da união quem continuará a saber será a alma e não o homem no seu composto.
Por fim F. Sanches analisa o problema a partir do seu ponto mais simples e óbvio. Essa análise vai incidir sobre os termos verbais, ou seja, se saber e recordar significam o mesmo ou não. Se significarem o mesmo então a teoria platónica poderá ter algum fundamento, caso contrário, ficará provado que saber é outra coisa diferente de recordar e que a teoria de conhecimento de Platão não pode ser ciência.
É fácil verificar que empregamos os termos saber e recordar de formas muito diferentes. Sanches, contudo, oferece um exemplo curioso para sustentar esta observação, afirma ele que até os cães são capazes de recordar;

«Pois não há muito que eu propositadamente bati num, que depois disso ladra todas as vezes que me vê, lembrando-se certamente das pancadas; mas quem dirá que os cães sabem?», pág. 81.

            A questão aqui é que o verbo recordar pode ser aplicado em várias situações e circunstâncias, e não está estritamente condicionado só ao ser humano, uma vez que também os animais, como os cães, são habilitados a recordar. Já com o verbo saber a coisa não será tão simples, para Sanches esta aptidão está reservada em exclusivo ao ser humano.
            Porém, se alguém afirmar, estimulado pela opinião de Aristóteles, que os cães nem sabem nem recordam, apenas reagem a estímulos, Sanches apressa outro argumento para responder a esta objeção, afirma ele que também as mulheres e as crianças se recordam – lembro que as mulheres no tempo de Francisco Sanches não tinham o estatuto que têm hoje, era normal considerar as mulheres inferiores, não eram vistas da mesma forma que os homens, muitas vezes foram consideradas como não possuindo qualquer capacidade intelectual – e nada sabem. A conclusão a que Sanches quer chegar é que recordar e saber não significa o mesmo, e este foi o grande erro de Platão, e é a grande refutação que Sanches pode fazer. Contudo, caso Platão concorda-se que significam coisas diferentes, então teria de esclarecer qual deles teria um estatuto superior ao outro, e qual a diferença que tornava possível a sua distinção. Para clarificar a sua posição, Sanches fornece um exemplo;

«Efetivamente o homem é um animal, mas não é o único, porque também o é o cavalo, e por isso juntamos a este a palavra quadrúpede e àquele a palavra bípede» pág. 82.
           
Apesar de serem os dois animais não significam o mesmo, precisamente porque foi adicionado um outro elemento, que falta na conceção platónica, e que Sanches não consegue encontrar, para que fica-se claro que saber e recordar eram coisas distintas. Uma vez que não encontra, e depois de ter chegado à conclusão que saber e recordar significam coisas distintas, chega à conclusão que a teoria platónica de ciência não pode ser correta. Logo, saber não é recordar.
Apesar de Sanches nesta critica complexa da teoria da reminiscência passar à margem do essencial, refutando-a apenas à luz do sensismo, da realidade do esquecimento, e dos recursos da dialética, ele consegue aquele que era o seu principal propósito, refutar uma teoria de um grande pensador, que influenciava ainda muito o pensamento da sua época. E quer Platão, mas principalmente Aristóteles, eram as grandes autoridades no saber da natureza. Neste sentido, Sanches para puder afirmar uma posição, que no seu entender era a correta, teve obrigatoriamente de se ocupar daquilo que Platão e Aristóteles disseram, teve de contrariar a escolástica, uma vez que esta tinha sido dominada por estes dois autores ou seus seguidores.
Sanches na obra não se propõe a demonstrar a ilegitimidade de todo e qualquer juízo predicativo e afirmativo, mas somente a inconsistência do conceito de ciência como saber universal e essencial, e a refutação à teoria platónica atingiu esse propósito, revelando-a como um conceito falso de ciência, o que contribuiu para poder construir um conceito, que nas suas palavras, seria um conceito de ciência firme e fácil, sem arquétipos nem predicamentos.    

SANCHES, Francisco, Que Nada se Sabe (1581) in Obra Filosófica, Lisboa, I.N.-C.M, 1999, pp. 59-147.

Ricardo Carvalho