quarta-feira, 20 de abril de 2011

Qual o paradigma (o utilitarismo das preferências de Singer ou perspectiva dos direitos de Regan) que mais protege os animais humanos, os animais não humanos e os restantes seres da natureza?


Neste planeta em que vivemos e denominamos de terra, existem diversos seres vivos que interagem numa natureza. A história desses seres vivos e dessa natureza depende da perspectiva em que é narrada. Por exemplo, segundo o criacionismo os seres vivos e a natureza dependem de um criador, de um Deus que possibilitou a sua existência, e as características e atributos de cada espécie foram definidas desde o início. Noutra perspectiva, como o evolucionismo, a história dos seres vivos é a história da sua evolução orgânica e de uma selecção natural das espécies, da sua constante adaptação ao meio. Estas concepções dos seres vivos e da natureza partem sempre do ponto de vista da humanidade, porque o homem quer numa quer noutra concepção é um ser especial. No evolucionismo o ser humano é um animal e por isso mesmo um produto da evolução como todos os outros seres vivos, mas é especial porque foi o ser que evoluiu mais. Na Bíblia é especial porque Deus criou o homem à sua imagem:

Deus a seguir disse: “façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra”. Deus criou o homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: “crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra”. Deus disse: “Também vos dou todas as ervas com semente que existem à superfície da terra, assim como todas as árvores de fruto com semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que sobre a terra existem e se movem, igualmente dou por alimento” Génesis, 1: 26-28
           
Estas perspectivas assumem uma importância determinante na forma como nós, seres humanos, olhamos para o resto dos animais e da natureza. A sobrevalorização do homem, quer seja justificada em Deus ou no próprio homem, como aconteceu no renascimento, é uma realidade presente na maioria dos seres humanos. Contudo a concepção religiosa é aquela que maior influência obteve e, quer sejamos religiosos ou não, grande parte de nós teve uma educação constituída por pressupostos religiosos (falo aqui enquanto ocidental). Como está descrito na passagem acima referida, na religião os animais e a restante natureza estão sobre o domínio e para uso do homem. Para a religião, o único ser que tem moralidade e é digno dessa moralidade, é o ser feito à semelhança de Deus, ou seja, é apenas o homem. Todavia, esta perspectiva que a religião assumiu e que fez doutrina, apenas teve em conta uma parte daquilo que a Bíblia diz, já que noutras passagens da Bíblia afirma-se o contrário:

E assim dei-me conta que Deus permite que o mundo continue no curso do pecado para poder por à prova a humanidade, e para que os próprios homens verifiquem que não são melhores do que os animais. Pois tanto estes como aqueles respiram o mesmo ar, todos têm o mesmo destino, todos morrem. A humanidade não tem reais vantagens sobre os animais, e tudo é efémero. Todos vão para o mesmo lugar, todos foram feitos do pó, e todos para o pó hão-de voltar. Eclesiastes, 3: 18-20

A Bíblia apresenta-se com ambiguidades, o que explica o facto de a moral cristã, que aparentemente se apresenta tão preocupada com o sofrimento de todas as formas de vida, possa reagir à ideia de uma extensão da moralidade aos animais, como se isso constituísse uma provocação aos seus fundamentos ontológicos, como se isso determinasse uma nova religião concorrente, fornecendo aos novos crentes formas de verem as questões da justiça, do bem e do mal, do sofrimento, sob a forma de um novo propósito libertador ou salvador, só que agora da salvação dos animais. Todas estas espécies de mistificações tornaram os animais não humanos quase invisíveis para a moral. As teorias que assumem uma perspectiva divergente da generalidade, atribuindo outro estatuto aos diversos seres vivos e à natureza, não estão apenas a “opor-se” à doutrina religiosa – refiro-me aqui aquilo que foi a doutrina papal até agora vigente, e não a toda a religião, porque mesmo a partir da Bíblia, há teólogos que defendem os direitos “teológicos” dos animais. Como por exemplo, Andrew Linzey – mas a toda uma sociedade que está fundada por pressupostos éticos religiosos, impregnada de tradições, interesses e hábitos extremamente enraizados. Logo, a aceitação de teorias divergentes vai depender muito da força dos seus argumentos, e sobretudo do tempo, ou seja, o que hoje nos parece ridículo e inconcebível, amanhã pode ser a verdade deste mundo.
É neste cenário que entram as perspectivas de Tom Regan e Peter Singer. O primeiro é neo-kantiano, oferece uma versão mais radical, que sustenta uma libertação através do reconhecimento de direitos subjectivos aos animais, o segundo apresenta um panorama mais moderado, mais permeável à solução da simples salvaguarda do bem-estar, a partir da conjugação de interesses de acordo com preceitos e impulsos utilitaristas. Ambos têm uma perspectiva ética dos seres vivos e da natureza diferente da perspectiva religiosa e da generalidade da humanidade. Peter Singer e Tom Regan argumentam contra aquilo que designam por especismo, ou seja, contra a discriminação que tem por base a espécie. Tal como o ser humano já havia recriminado outras formas de descriminação, como o racismo ou o sexismo, tem também de recriminar a descriminação feita com base na espécie. Formulam a ideia de uma moral universal e igualitária, que resultaria numa sociedade sem qualquer forma de discriminação, fosse ela da raça, do sexo ou da espécie. Quer uma quer outra perspectiva são pertinentes, e qualquer pessoa que se confronte com elas não pode ficar indiferente aos problemas que colocam e sobretudo às consequências que delas se pode retirar.
Peter Singer insere-se na abordagem ética consequencialista. A teoria consequencialista mais conhecida é o utilitarismo. Para o utilitarismo clássico uma acção é boa quando esta produz um desenvolvimento igual ou maior da felicidade de todos os envolvidos relativamente a uma acção alternativa, e considera um mal se assim não suceder. Singer na sua teoria utilitarista difere um pouco do utilitarismo clássico, pelo facto de «melhores consequências» ser compreendido como aquilo que, analisadas as alternativas, aprofunda os interesses dos afectados, e não simplesmente o que aumenta o prazer e diminui o sofrimento. Segundo ele, para além de se dever realizar a acção que vai ter em conta o maior número de felicidade dos envolvidos, deve-se também tomar em consideração os interesses de todas as pessoas que serão afectadas pela nossa decisão. Daqui resulta que sempre que se tome uma decisão, é necessário ponderar todos esses interesses, e eleger a acção que vai ter maior probabilidade de maximizar os interesses de todos os afectados. Isto obriga a escolher as acções que vão produzir melhores consequências depois de analisar as alternativas.
Ninguém pode negar que os seres humanos diferem entre si, e que essas diferenças são de tal ordem e em tal quantidade que a procura de uma base factual sobre a qual se possa encontrar um princípio de igualdade parece algo impossível de se realizar. Porém, hoje nos termos políticos e éticos dominantes vigora o princípio de que todos os seres humanos são iguais. Em que consiste então esta igualdade? Para Singer esta igualdade só pode estar assente num princípio de igualdade na consideração de interesses. A igualdade não pode ser fundamentada, como muitos pensaram, na posse de inteligência, personalidade moral, racionalidade ou outros atributos idênticos. «Não há qualquer razão logicamente imperiosa para pressupor que uma diferença de capacidade entre duas pessoas justifica quaisquer diferenças na consideração que damos aos seus interesses. A igualdade é um princípio ético fundamental, e não um enunciado de factos.» (Singer, 2002: 38). O âmago do princípio da igualdade na consideração de interesses obriga a que se confira o mesmo peso, nas decisões morais. Ou seja, o princípio funciona como uma balança, pesando os interesses de forma equitativa. O lado que seria mais favorecido era aquele cujo interesse fosse maior, ignorando a quem pertencem esses interesses. É desta forma que o princípio mostra claramente que as formas de racismo, sexismo ou especismo estão erradas, porque, por exemplo, no caso do sexismo o sexo é insignificante para a consideração de interesses, porque o importante são os interesses em si, atribuir maior importância a uma quantidade específica de dor por essa dor ser vivida por um membro do sexo masculino seria fazer uma distinção arbitrária. O que o princípio faz é impedir que a nossa decisão para considerarmos os interesses dos outros derive das suas características ou aptidões, e que apenas se tenha em conta a característica de possuírem interesses. O princípio da igualdade na consideração de interesses é um princípio mínimo de igualdade e não um princípio perfeito e consumado, na medida em que não impõe um tratamento igual, porque os graus de bem-estar variam e são diferentes de situação para situação (cf. Singer, 2002: 41).
Singer com esta argumentação pensa ter encontrado o princípio fundamental de igualdade de todos os seres humanos. Só este princípio colocaria os seres humanos num patamar de igualdade respeitando todas as diferenças que existem entre eles. Todavia, este princípio não se limita apenas aos seres humanos, porque se o princípio de igualdade serve para uma base moral entre elementos da espécie humana, também tem de servir para outros elementos de espécies não humana. O argumento que Singer usa para alargar o princípio de igualdade para as outras espécies não humanas é o mesmo que usa para alargar o princípio para todas as raças e para todos os sexos, ou seja, o princípio deve ser aplicado tendo em conta o interesse de todos os afectados e não as determinadas características e aspecto dos envolvidos. Por um indivíduo pertencer a uma raça diferente da nossa, não nos dá o direito de ignorarmos os seus interesses, da mesma forma que um animal pertencer a uma espécie diferente, não nos permite ignorar os seus interesses. Singer estabelece que os animais também possuem interesses seguindo a linha de pensamento Bentham, que aludia a capacidade para sofrer como o requisito fundamental que confere a um ser o direito à consideração igualitária. Singer acrescenta ainda o facto de um ser poder também ser feliz para além de poder sofrer e, possuir estas características é o necessário para se ter quaisquer interesses. Se um ser sofre, então deixa de existir qualquer justificação moral para não se ter esse sofrimento em consideração. Desta forma, o princípio de igualdade obriga a que o sofrimento seja considerado de forma igual independentemente do ser que o sente. A dor e o sofrimento são maus por isso devem ser evitados ou reduzidos, isto independentemente do sexo, da raça ou da espécie. Se um ser não sente dor nem tem felicidade, então não é preciso tomar em consideração nada, estabelece a senciência como o limite da consideração de interesses, ou seja, o limite da extensão da moralidade.
Segundo Peter Singer, para que o princípio da igualdade na consideração de interesses seja respeitado relativamente aos animais, é necessário que os humanos promovam as atitudes moralmente correctas de consideração pelos animais, como por exemplo, não os matar, comer ou fazer experiências desnecessárias.
Na minha opinião, o paradigma de Singer estabelece de forma correcta os limites da extensão da moralidade. O que parece falhar é a escolha da teoria ética e a sua fundamentação. Uma teoria consequencialista utilitarista parece não se adequar bem à realidade, uma vez que a priori não se sabe qual será o desfecho de uma acção, e adoptar acções que têm como fim as suas consequências, pode torna-las arbitrárias. Diariamente deparamo-nos com diversas situações que não nos dão tempo para analisar qual a acção que produzirá melhores consequências. Outra dificuldade consiste em analisar quais são todos os envolvidos quando realizamos uma acção, e consequentemente quais os seus interesses, uma vez que uma acção pode ter um efeito imediato e circunscrito, mas outra acção pode não ter um efeito tão imediato e implicar uma quantidade indeterminada de interessados que não temos forma de saber aquando da tomada de decisão. Isto para além de ser muito complicado analisar quais os interesses concretos dos animais. Singer de uma forma ou de outra tenta responder a estas objecções, no meu entender sem o conseguir fazer de forma satisfatória. Como estes problemas dariam para muitos desenvolvimentos, quero apenas realçar que a abordagem ética de Singer não é aquela que considero ser a mais adequada para conceder uma igualdade no domínio ético. Porque, quando se defende a igualdade ela não pode estar ao serviço da maioria, ou deixa de ser uma igualdade. Nem se pode não ter em conta um indivíduo se isso vier a manifestar-se favorável a uma quantidade maior de indivíduos, como Singer defende, «se tivéssemos de fazer experiências com um ou mesmo com uma dúzia de animais para salvar milhares de pessoas, penso que fazê-lo seria um bem e que estaria de acordo com a igualdade na consideração de interesses» (Singer, 2002: 87). Se defendemos uma igualdade, ela tem de ser uma igualdade a todos os níveis, respeitando as diferenças de cada espécie obviamente. Singer o que faz é instrumentalizar as pessoas ou os animais, não os tomando como fins mas sim como meios. Daí eu considerar que a abordagem ética de Regan, que se inspira na ética do dever kantiana, nomeadamente na fórmula do princípio da finalidade do imperativo categórico, é a que mais respeita os humanos e os não humanos, porque cada individuo conta por si mesmo, pelo seu valor inerente.
Tom Regan adapta muito bem a teoria kantiana à necessidade do alargamento da moralidade. Regan defende uma teoria dos direitos. Difere do utilitarismo na medida em que considera que indivíduos com certas características têm um valor intrínseco, que não podem ser sacrificados em favor do bem geral. Os direitos foram sempre vistos como pertencentes a quem possui racionalidade, ou seja, a humanos, com capacidade de realizarem acordos para que o entendimento entre indivíduos e sociedades fosse possível. Esses contratos nunca ultrapassaram a barreira da espécie. Torna-se pertinente saber que entidades podem ser sujeitos de direitos? Para autores contratualistas, como Hobbes, Rousseau ou J. Rawls, eram sujeitos de direitos todos aqueles que tivessem o poder de reivindicar ou renunciar a esses direitos, todavia, estas teorias, deixavam de fora muitos seres humanos, como os deficientes mentais, as crianças, e também os animais.
Para Kant, eram detentores de direitos os seres autónomos com capacidade de racionalização. Idealizou uma teoria das pessoas enquanto seres racionais e autónomos que tinham capacidade para universalizar as suas máximas para qualquer ser com razão. Seria precisamente a razão que tornaria o ser humano superior ao animal. O ser humano está sujeito às inclinações, tem inclinação para a animalidade, para a humanidade e para a personalidade, só esta última é verdadeiramente moral «age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio» (Kant, 2008: 73). Apenas um ser com autonomia racional, capaz de agir pelo dever e de respeitar outra pessoa como um fim em si mesmo, pode reivindicar esse direito para si também, logo, as entidades que não possuem autonomia racional, como os animais, não podem ser consideradas sujeitos de direitos.
Tom Regan defende com Kant que cada indivíduo tem valor ético em si mesmo. Os indivíduos com certas características têm um valor intrínseco. Porém, enquanto Kant limitou o valor intrínseco apenas aos seres humanos, Regan alonga-o a outras espécies. Um dos argumentos utilizados por Regan consiste em afirmar que, uma vez que existem seres humanos que não possuem autonomia racional e é-lhes atribuído valor inerente, como os recém-nascidos e os deficientes mentais profundos, seres humanos “não-paradigmáticos”, então, por uma questão de coerência lógica, também devemos atribuir valor inerente aos animais não humanos (cf. Regan, apud Beckert, 2004: 50). Mas esta analogia não demonstra porque é que os animais não humanos devem ser considerados como detentores de valor inerente por si mesmo. Segundo Regan, o motivo para um indivíduo possuir valor inerente, possuir direitos, consiste em ter de ser considerado como “sujeito-de-uma-vida”. E os indivíduos são «sujeito-de-uma-vida se tiverem crenças e desejos; percepção, memória e um sentido do futuro, incluindo do seu próprio futuro; uma vida emocional, juntamente com sentimentos de prazer e dor, interesses preferenciais e de bem-estar; a capacidade de iniciar acções na persecução dos seus desejos e objectivos; uma identidade psicofísica ao longo do tempo e um bem-estar individual, no sentido de que a sua experiência de vida corre bem ou mal para eles, de forma logicamente independente da sua utilidade para outros e de forma logicamente independente de serem objecto do interesse de outros». (Regan, apud Beckert, 2004, 52,53).
Os animais que são sujeito-de-uma-vida não podem ser submetidos a sofrimentos e à morte, mesmo que seja para beneficio de outros ou que seja do interesse do maior número. Aos outros animais que não são sujeitos-de-uma-vida, diz Regan que deve ser dado o benefício da dúvida, porque ainda não se sabe o suficiente destes para os considerar como não pertencentes à esfera moral. Ou seja, basicamente devemos incluir todos os animais na esfera da moralidade. Neste plano concreto, penso que o paradigma que se ajusta melhor é o de Singer, uma vez que estabelece como limite a senciência, porque o que não sente dor nem tem sentimentos não tem valor inerente. 
Para lá da questão do limite, o paradigma que mais protege os animais humanos e os animais não humanos é de Tom Regan, já que é aquele que respeita os indivíduos como sujeitos autónomos e dotados de valor inerente, que os trata como fins e não como meios, poderíamos adaptar o imperativo categórico de Kant a Regan da seguinte forma; “age de tal maneira que uses o sujeito-de-uma-vida com valor inerente, tanto na tua espécie como em qualquer outra, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.
Na ética ambiental, os dois autores diferem praticamente na mesma medida em que diferem na ética animal. Peter Singer ao estabelecer a senciência como limite da moralidade deixa os restantes seres vivos de fora, Tom Regan ao querer abranger todos os interesses dos sujeitos-de-uma-vida, alarga a moralidade a muitos mais seres.
Singer considera que a natureza apenas tem um valor instrumental e não intrínseco. A natureza não é capaz de sentir dor ou prazer, logo não tem qualquer interesse que tenha de ser respeitado. Apesar disto, a natureza não pode estar à mercê do homem de uma forma puramente instrumental, porque quando afectamos a natureza, transformando-a, estamos simultaneamente a transformar o habitat de muitos animais não humanos. Se daí resultarem maiores prejuízos para os animais não humanos que benefícios para os humanos, então a intervenção deve ser rejeitada. Ao intervirmos na natureza podemos estar a comprometer também os humanos, quer no presente, devido às alterações climatéricas e à perda de recursos, quer no futuro, comprometendo as gerações futuras, não só no seu nível de vida como na esfera estética (não poderem contemplar ou usufruírem da natureza). Quando se realiza uma intervenção na natureza, segundo a teoria singeriana, é necessário fazer um cálculo dos benefícios e prejuízos que dela resultarão para todos os envolvidos, humanos e não humanos. Se por interesses materiais ou outros quaisquer, os humanos intervirem na natureza têm de saber se o benefício que retiram é maior que o prejuízo que causam. Singer não atribui valor moral à natureza, mas reconhece que o ambiente é necessário para o bem-estar de todos os seres sencientes na medida em que se não houver um respeito pela natureza isso afectará adversamente os seres sencientes. Ou seja, a ética utilitarista de Singer serve apenas para defender interesses, humanos e seres sencientes, os únicos capazes de ter interesses.
Para Tom Regan há duas condições para uma ética genuinamente ambiental. A primeira é que há seres não humanos com estatuto moral. A segunda condição é que alguns desses seres não são conscientes. E justifica esse facto com uma distinção da utilização do conceito de interesse. Ao contrário de Singer, o conceito de interesse tanto pode ser reportado a um ser consciente, como pode haver outros seres que tenham interesse. Regan diferencia então ter interesses e ser do interesse de. Há uma distinção entre alguém ter interesse por algo ou algo ser do interesse de alguém. Ter interesses corresponde a ter desejos e crenças, que se reporta a seres sencientes, e ser do interesse de, corresponde a seres não conscientes, que podem não ter interesses, mas pode ser do interesse deles manter o seu bem-estar, o seu bem próprio, por exemplo, é do interesse de uma árvore ter água. Seres não conscientes podem também ter um valor inerente, não no sentido de ter crenças ou desejos, mas no de possuir determinadas características. O valor inerente aqui tem de ser compreendido no sentido de um bem-estar próprio. Cada modo específico de vida tem o seu valor inerente que deve ser preservado, quer corresponda ao homem, ao animal ou ao ambiente. Em sentido de conclusão, a ética de Tom Regan não fecha a porta a uma ética ambiental.
Pelo que já havia referido acima, considero que o limite imposto por Singer para a esfera da moralidade é o mais admissível, como tal, julgo que os pressupostos que este apresenta são os que melhor defendem os seres não sencientes e restante natureza. Contudo, considero a abordagem ética de Regan a mais adequada.  
Desta forma, um paradigma ideal seria fazer uma agregação das duas teorias, aproveitando os limites impostos por um e a concepção ética utilizada por outro. Mas, acima de tudo, quer uma quer outra contribuem para elevar a necessidade do homem olhar para os animais não humanos e natureza de outra forma, respeitando-os e atribuindo-lhes outra dignidade e estatuto. A forma como olhamos os animais não humanos e natureza tem raízes culturais, e a religião no meu entender foi a principal responsável pela forma depreciativa com que os olhamos, mas como expus no início deste ensaio, foram apenas os homens que desvirtuaram a forma como consideramos tudo que seja não humano, porque a “palavra” de Deus é ambígua, logo as duas perspectivas são aceitáveis, então, como seres racionais devemos escolher aquela que mais se adequa a esse nosso estatuto, e julgo que Peter Singer e Tom Regan já fizeram uso dessa capacidade racional, mas daí até à humanidade em geral se desprender das suas raízes e fazer uso daquilo que é mais racional ainda vai levar algum tempo. Assim aconteceu com o racismo, com o sexismo e também vai acontecer com o especismo. 

Ricardo Carvalho 

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Apanhador de Almas

Desde à muito tempo que subsiste a ideia da possibilidade de se ver transferida toda a informação que um cérebro humano processa e memoriza ao longo da vida, para um suporte não biológico. Existe inclusive um amplo número de programas de investigação a trabalharem nesse sentido. Neste artigo retrata-se um desses programas em particular, levado a efeito por uma das unidades de investigação da British Telecom, designado “Soul Catcher” (cf. Curado, Luz Misteriosa, cap. 7, 2008). O projecto consiste em implementar um micro-chip algures no percurso do nervo óptico, de forma a ser possível monitorizar todos os percursos da informação visual. A monitorização pode alargar-se aos restantes percursos de informação que medeiam entre o cérebro e o corpo, e entre o cérebro e o mundo exterior. O objectivo do micro-chip é o de conseguir um registo completo de todos os pensamentos e sensações experimentadas durante o tempo de vida de um indivíduo.
Outros projectos semelhantes já anteriormente tinham conseguido reconstruir, com a técnica de autoradiografia, as últimas impressões visuais registadas no córtex visual de um macaco. Entre um e outro projecto, graças ao desenvolvimento das técnicas de imagiologia, é possível supor que as reconstruções de impressões subjectivas em módulos diferentes da visão são possíveis em princípio. Com as técnicas EEG (electroencefalografia) é possível identificar a actividade bioeléctrica do cérebro e identificar que, a actividade em bebés de vinte e seis semanas é idêntica à de adultos durante uma pequena parte do dia, nomeadamente nos períodos de REM (é a fase do sono na qual ocorrem os sonhos mais vívidos. Durante esta fase, os olhos movem-se rapidamente e a actividade cerebral é similar àquela que se passa nas horas em que se está acordado). E se o sono REM está em linha de continuidade com a consciência, então existe uma tecnologia capaz de identificar a presença de períodos REM, logo, é possível parcialmente saber que tipo de consciência está a ocorrer nessa fase. Desta forma poderá afirmar-se que sabemos o que é ser um feto, ou seja, saber o que é ser alguém diferente de si mesmo, «o que sente um bebé é o que sinto em REM». Resulta daqui uma identidade de tipos, ou seja, o meio caminho entre a ignorância sobre a subjectividade de outro ser humano e o conhecimento completo da subjectividade de outro ser humano. Derivará daqui, que em certa medida, a subjectividade foi parcialmente vencida.
Uma identidade deste tipo está obviamente cheia de imperfeições, basta pensar que a actual tecnologia pode vir no futuro a melhorar consideravelmente, e demonstrar que de facto o que se passa num feto de vinte e seis semanas não é o mesmo que se passa num adulto em fase de REM, apesar de parecer semelhante. Mas o importante é que a teoria é pelo menos suficientemente boa para contrariar, em certa medida, os que defendem a impossibilidade de se ter acesso a uma subjectividade diferente da própria.
Uma outra técnica contemporânea que apoia o argumento de se puder conhecer a subjectividade de terceiros, é a técnica de BMI’s. É possível implementar microfibras condutoras e microcircuitos na massa encefálica, de forma a que, sempre que algum neurónio do córtex motor for activado por uma intenção, é possível fazer mover braços mecânicos, outras técnicas semelhantes são os casos de EMG’s e EOG’s.  O interesse destas tecnologias recentes, para a reflexão da consciência, consiste na possibilidade de fazer accionar sistemas exteriores ao corpo humano com o pensamento, visto que uma intenção ou um desejo são eventos mentais tão significativos como o sentimento de si mesmo.
Desta forma um argumento progressivo pode, pois, ser defendido:
1) Se não há nada de substancialmente diferente entre o cérebro e o resto do corpo;
2)se não há nada de substancialmente diferente entre os elementos da vida mental, como memórias, intenções, desejos, conteúdos da consciência, autoconsciência, etc.;
3) e se está demonstrada tecnicamente a possibilidade de visualizar no exterior alguns dos elementos do conjunto de objectos ou eventos da vida mental;
4) segue-se que é muito forte a plausibilidade de encontrar modos tecnológicos de visualizar, aceder ou exteriorizar os outros elementos do conjunto da vida mental. (Curado, Luz Misteriosa, 2008, 133)
As premissas 1 e 2 são de referência fisicalista e fenomenológica. Os argumentos que sustentam a premissa 1 são:
A separação entre cérebro e corpo é uma ficção metodológica inaceitável, quer por razões de fisiologia médica, quer por modelos computacionais.
Se diferença existisse, boa parte da visão científica do mundo estaria errada, e é improvável que isso aconteça.
A premissa 2 é mais complexa, devido à possibilidade de se pensar num sólido de conteúdos conscientes de um nível superior que tivesse como constituintes os sólidos parciais (como demonstra o sólido das cores p. 134). Este sólido dos sólidos conscientes representa todas as experiências subjectivas possíveis de um determinado ser consciente. Thomas Nagel projectou uma fenomenologia objectiva, que consistia em defender um modo de compreender a subjectividade como se esta fosse objectiva e acessível a observadores exteriores ao sujeito das experiências. Vários outros programas do género foram apresentados, mas a todos se lhes colocaram várias reservas, como se os autores considerassem que a ideia de representação objectiva de todas as experiências subjectivas, desempenha-se um papel metodológico.
Um argumento contra as premissas 1 e 2 é o da defesa da falta de continuidade, ou seja, a parte material do mundo ocupada pelo cérebro não tinha continuidade com todas as partes materiais do corpo e com o ambiente, embora, do ponto de vista científico, é inaceitável este ponto de vista, ou seja, como sistema físico, um cérebro compartilha as propriedades físicas fundamentais de qualquer outro sistema físico. Assim, do ponto de vista científico a continuidade da matéria está assegurada, o que não fica assegurado são as propriedades da matéria em causa. Todos os grupos de matéria possuem propriedades físicas diferentes, o que pode levar a pensar na sua descontinuidade, bastaria para isso verificar que um deles possui propriedades mentais, para constituir razão para uma descontinuidade.
A premissa 3 está no princípio da investigação contemporânea. Os relatórios científicos que já foram publicados a seu respeito não foram desmentidos.
Resumindo o que já foi discutido nas 3 premissas, a investigação científica contemporânea dá um apoio forte ao argumento que propõe o cenário de uma tecnologia que permita aceder à vida mental dos seres humanos. Apesar de serem casos diferentes, o que está em causa no apanhador de almas e nas técnicas de imagiologia, possui as mesmas características estruturais que o caso de Ötzi. Pode dar-se o caso de se saber mais sobre um ser humano que de nós mesmos (cf. Curado, Luz Misteriosa, cap. 6, 2008).

           
                        Ricardo Carvalho